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Ética e saúde pública: por que o aborto é uma questão preocupante?

Lendo o texto publicado no site do Drauzio Varella, tive a ideia de escrever brevemente sobre a questão. É um tema que particularmente me interessa, não apenas por eu ser graduado em Enfermagem (área que naturalmente aborda o tema, por ser um dos eixos a Saúde da Mulher) mas também por ser um assunto rodeado de tabus e impressões equivocadas, com profundas implicações éticas. Eventualmente me envolvo em debates sobre o tema, que causa polêmica sempre que é abordado ou citado. As opiniões, quando não embasadas em conhecimento técnico, são polarizadas radicalmente em dois opostos. Como complemento, você irá encontrar links com material de leitura ao longo deste texto.

O abortamento é um assunto delicado, pois envolve questões íntimas e pessoais, sem contar a violência envolvida contra o corpo da mulher que se submete a tal prática. Muitas pessoas acreditam que o aborto, se legalizado, se tornará banalizado. Percebo a necessidade de esclarecer alguns pontos, facilitando o entendimento e diminuindo essa polarização, que em nada acrescenta.

O aborto deve ser encarado como um procedimento, como qualquer outro, que consiste na interrupção da gestação em algum momento. Essa interrupção pode ser espontânea ou provocada. No caso da primeira interrupção, se faz necessário o atendimento secundário ao ocorrido. A segunda forma envolve a interrupção intencional, quando há a interrupção induzida por fármacos ou cirúrgica/mecanicamente. Um abortamento pode ter fins terapêuticos, quando há a ocorrência de um estupro, do risco de morte materna envolvido ou algum aspecto teratológico (anencefalia ou outro tipo de malformação fetal).

Um dos principais mitos que envolvem a discussão sobre o aborto é a sua legalização. Termo esse que prefiro não utilizar, apesar de correto do ponto de vista jurídico, pois gera interpretações inadequadas para o debate. Há um viés criminal muito forte e negativo quando vemos apenas o ponto de vista jurídico. O protagonismo da mulher pode ser um ponto positivo a ser lembrado quando discutimos esse tema livres de ideias preconcebidas.

Leia aqui um artigo sobre esses conceitos. Ouça também a diferença entre descriminalização e despenalização.

A humanização é algo recorrente nos serviços de saúde e nas discussões acadêmicas, sendo por sua vez um instrumento necessário para implementar melhorias na assistência. Não poderia ser diferente quando o assunto é reprodução. É preocupante quando pensamos nos abortos realizados clandestinamente, em clínicas irregulares e sem nenhum tipo de critério sanitário. Os números são distorcidos, pois não é possível estimar exatamente quantos abortos são feitos sem que as autoridades de saúde possam contabilizar. A subnotificação dificulta o entendimento global da questão, nos deixando sem opções de abordagem. Leia aqui uma publicação: “Grave problema de saúde pública e de justiça social”.

O forte apelo religioso e político interfere na adoção de medidas funcionais, que viabilizem uma assistência adequada à mulher. De preferência sem julgamentos morais ou conotações pejorativas. A mulher se torna ainda mais vítima das concepções normativas que as pessoas carregam consigo, sem ter o mínimo de sensibilidade ao se deparar com algo do gênero.

Confira aqui a cartilha “Parto, Aborto e Puerpério”, produzida pelo Ministério da Saúde em 2001, em parceria com a Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e a Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO).

Independente de qual seja o nosso posicionamento pessoal, devemos nos atentar para o foco do debate, que é a integridade física e psicológica da mulher. Não importa o que pensemos, a mulher sempre decidirá por si mesma, por seu próprio corpo, mesmo com todo o risco que irá sofrer. Ninguém mais será gestante, a não ser a própria mulher. Ninguém mais entende o que é estar gestante sem o desejar, por qualquer que seja o motivo. Devem existir critérios clínicos de elegibilidade, ou seja, parâmetros que nos permitam considerar o abortamento ou não. Proibir não é solução, apenas nos afasta da resolução deste problema e gera um viés moralista desnecessário.

Lembremos sempre que a gestação, nos dias atuais, pode ser planejada. Existem diversos métodos de contracepção disponíveis, não sendo o aborto um deles (é um procedimento a posteriori). Se a humanização se tornar o princípio fundamental nessa questão e a educação sexual for sempre colocada como ferramenta, não mais existirão distorções e pré-conceitos. O aborto perderá esse aspecto de tabu, essa “cara” de crime hediondo.

A prevenção ao aborto, como medida de educação em saúde, deve ser vista como um pilar, um caminho para a resolutividade desse problema, que vitima mulheres no anonimato, sem que saibamos os motivos e as consequências sofridas. A morte não pode ser uma “punição” por uma “má conduta”. O julgamento indevido é uma forma de tortura, por mais que não vejamos por esse ângulo. A morte por complicações não é uma opção de sentença.

Pedro H. Costa

Pedro H. Costa

Bacharel em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atuo desde 2012 no Centro de Estudos e Pesquisas sobre Álcool e outras Drogas, pela mesma instituição. Interessado em saúde, educação, ciência e filosofia. Faça uma pergunta: ask.fm/phcs91