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As cores do vestido – artigo completo

No dia 25 de Fevereiro de 2015, a usuária Swiked do Tumblr postou a foto de um vestido, perguntado as cores de um vestido listrado, e dizendo que ela e seus amigos não conseguiam chegar a um consenso das cores. A foto e a discórdia se espalharam, “dividindo a internet”, tornando essa discussão um dos maiores (se não o maior) viral de 2015 até o momento.

Já foi postado aqui na UR uma tradução do artigo do WIRED, porém ainda houve mais discussão, e o artigo não abrangeu todos fatores envolvidos, além de que houveram erros de tradução.

Este artigo é para quem quer explicações mais precisas, completas, e mais específicas, que abranjam todos fatores envolvidos, e não somente o fator central.

AS CORES, A VISÃO E A VISUALIZAÇÃO:

A cor em si é uma sensação, e não uma característica física da luz.
A característica real da luz relacionada à cor é o espectro, porém diferentes combinações de espectro podem gerar uma mesma cor, e um mesmo espectro em dos contextos pode parecer ter cores diferentes, ou seja: A cor não é uma característica objetiva e precisa de algo.

A visão biológica não se desenvolveu tal como nós desenvolvemos os sensores eletrônicos – buscando criar uma representação fiel da luz que incide sobre eles – mas sim conforme mutações tornasem-a mais útil para os seres vivos, conforme se tornasse melhor em obter e distinguir informação vital to ambiente, como se tem algo vindo da sua direção, se tem um formato/padrão que represente perigo, a posição dos elementos para permitir a navegação, além de outros fatores que variam dependendo da espécie que estamos falando.

No que se trata da cor (para nós e vários outros seres), é substancial ser possível identificar um objeto como sendo de uma mesma cor, mesmo que a iluminação sobre ele varie bastante ao longo do dia e no local onde está. Essa função se chama Constância de Cor.

A informação de cor, constraste e iluminação da imagem processada pelo cérebro se dá não pelos sinais absolutos dos impulsos nervosos vindos da retina, mas principalmente pela proporção entre esses sinais, e também pelas “pistas” que estes dão sobre como está a luminação do que está sendo visto, que são usadas para “compensar os desvios” nas cores. Esse desvio muitas vezes é avaliado determinando o que é branco/neutro na imagem, que é chamado de balanço de branco, pois o branco é o referencial usado para corrigir as cores. O branco é usado como referencial em todos sistemas de imagem em cores e sistemas de iluminação. Na nossa visão, esse balanço é um pouco mais complexo e menos exato, até porque podemos enxergar um cenário sem nada branco, porém ainda existe uma tentativa de buscar um tom “neutro” (branco, cinza, cinza escuro etc).

Mas, em cenários artificais, ou cenários naturais incomuns, o seu cérebro pode acabar estar “corrigindo o que não deveria ser corrigido”, e interpretando de forma errônea a cor original do que está sendo visto, ou tentando interpretar o tom mais claro de um objeto como sendo o branco da imagem (mesmo que ele tenha um desvio considerável para um outro tom). Por exemplo, na imagem do título, os vestidos parecem diferentes em cada quadro, mesmo estando idênticos (porém, é uma imagem artifical, na realidade seria impossível um mesmo vestido se manter igual nos dois cenários).

Adicionalmente a isso, ainda temos a questão dos meios e das condições de visualização das imagens.

A grande maioria dos meios de visualização de imagens (como monitores, tv’s, impressões, fotos reveladas etc) não conseguem reproduzir todo constraste da luz em ambientes reais, nem todo espectro visível, e nem mesmo todas cores visíveis[1]. Eles trabalham basicamente variando a intensidade de 3 raias espectrais: a do vermelho, a do verde e a do azul, seja pelo sistema aditivo (RGB) ou pelo subtrativo (CMY, e o CMYK varia também a luminância total). Mas isso (na maioria das vezes) não é problema, já que seu cérebro não trabalha com informação absoluta, e irá interpretar o que está sendo visto normalmente (especialmente se forem imagens naturais, “familiares” ao cérebro).

Os meios de visualização tem constraste, luminância e temperatura de cor diferentes na maioria das vezes (se tratando de modelos, marcas e materiais diferentes), e as condições de visualização de diferentes observadores em diferentes lugares também variam, tais como a iluminação do ambiente, e o tamanho da imagem para o observador (o quanto ela toma da visão dele).

Ou seja: Pelas diferenças nos meios e nas condições de visualização, pode haver mais discrepâncias ainda, especialmente se estivermos falando de uma imagem cujas “pistas” de iluminação estejam no limiar entre duas interpretações diferentes.

[1]: Esses sistemas de cor na verdade não tem “cores”, mas sim coordenadas que vão controlar a emissão/reflectância em diferentes partes do espectro, e todos eles podem gerar quase todas sensações de cor dependendo da imagem composta por um sistema destes. Para se avaliar as cores que um sistema pode ou não reproduzir, se faz uma análise matemática (comparando com um sistema que se considere referência da visão humana, como o CIE 1931), e/ou se fazem testes em condições bem definidas, sempre tendo uma referência que se considere completa para servir de comparação. Sem estar em um ambiente controlado e comparando dois sistemas, apenas vendo a imagem feita em um, é difícil para humanos notar essas dificiências.

O VESTIDO E A FOTO
a
Fonte: Amazon

Apesar de toda discussão, a cor do vestido é realmente azul e preto, e ninguém discorda (ou pelo menos quase ninguém) disso na foto de estúdio, com iluminação branca homogênea e exposição correta, que está à esquerda.

A foto do vestido do viral está levemente superexposta para o vestido (em outras palavras, mais clara do que deveria estar), está um pouco ofuscada pela luz do Sol, e está desviando

Fonte: WIRED
Fonte: WIRED (clique para aumentar)

os tons levemente para o amarelo (amarelando o preto e dessaturando o azul) por causa do balanço de brancos e da iluminação ambiente.

Na análise feita pelo WIRED (à direita) é possível ver (isoladamente e de acordo com as coordenadas RGB) que os tons de azul na imagem são médios/médio claros, e os tons de marrom vão desde o marrom médio até o escuro.

Não haveria discórdia se estivessem olhando pessoalmente o vestido, porque no ambiente real haveria toda a iluminação completa, além da possibilidade de mudar de perspectiva, mudar a iluminação, etc.

AS DIVERGÊNCIAS E OS MOTIVOS:

A principal divergência é entre ser branco e dourado ou azul e preto, porém muitos dizem coisas diferentes como branco-azulado e marrom claro, azul e marrom (como eu), dentre outras. Obviamente que, como deficiências e desvios mais incomuns na visão de cores existem em grande número (mesmo que proporcionalmente sejam poucos), eles vão aparecer nessas discussões, porém a grande divergência nada tem haver com deficiências ou nada incomum.

Pelo que pude avaliar consultando grupos e fazendo testes com imagens (me baseando no conhecimento científico sobre a visão humana e dos sistemas de cores, e nos diversos outros testes já existentes sobre esse mesmo vestido), há 3 principais questões (que não são totalmente separadas):

1- A interpretação da iluminação do ambiente. Como havia dito anteriormente, nosso cérebro usa “pistas de iluminação” para tentar “compensar o desvio” das cores, e a imagem do vestido parece uma cena familiar: algo contra o Sol, e tendo a face voltada pro observador iluminada apenas pelo céu, estando escurecida e desviada para o azul. Porém, o vestido não está exatamente nessa condição de iluminação na foto, e o corte da foto retira muita da informação necessária para inferir precisamente as condições de iluminação, então é de se compreender que, havendo mais liberdade na dedução da iluminação por parte dos observadores, haja também mais divergência.

2- A tendência a inferir um tom neutro e a sensibilidade às cores. Vários dos que viram o vestido branco e dourado na foto continuavam vendo branco e dourado mesmo que fosse-lhes apresentado um corte do meio do vestido, sem “pistas de iluminação”, provavelmente pela tentativa de inferir um tom neutro na imagem. Se colocado porém um quadro branco no meio, passavam a então ver que era azul, mesmo que “não muito”.  Já outras continuavam vendo como se fosse um tom de cinza claro, e só passavam a reconhecer como azul caso a cor fosse mais saturada no editor de imagens. A mesma coisa aconteceu de forma semelhante com quem via azul e preto, nesse caso, tendo dificuldade de notar o tom marrom. Ou seja, enquanto alguns notavam mais facilmente o desvio no marrom e consideravam neutro o azul, outros notavam mais facilmente no azul e consideravam neutro o marrom. Uma minoria viu o vestido de primeira como não tendo nenhum tom neutro, ou viram apenas partes pequenas como neutras (ainda percebendo o marrom e o azul na maior parte), porém saturando as cores a maioria passa a perceber a variedade de tons.

3- A interpretação da pergunta e a subjetividade da identificação de cores. A maioria das pessoas não conhece precisamente esquemas de classificação de cores, e podem variar a resposta mesmo que estejam vendo a mesma coisa, criando um pouco mais de divergência ainda. Um tom de azul muito claro (dessaturado) pode ser por algumas considerado como azul, e por outras como um branco, divergindo no que classificam como sendo azul e branco. Além disso, várias pessoas tem a capacidade dar duas respostas, uma ao tentar julgar a cor original do vestido (se focando mais na iluminação que parece ter), e outra ao dizer cor que está aparecendo na tela (se focando mas em partes isoladas). Várias outras também mudaram de interpretação (da foto original) apenas pela discussão, ou por ver versões editadas da foto.

Vale citar também que o cérebro tem uma certa tendência de manter uma interpretação que varia de pessoa pra pessoa, o que significa que a forma como são primeiramente apresentadas à imagem pode fazer com que sua interpretação persista, mesmo apresentando outras imagens e explicações pra ela, enquanto outras logo passam a interpretar de outras formas.

COMENTÁRIOS FINAIS:

Disso tudo podemos concluir muita coisa. Podemos concluir por exemplo que a foto foi realmente uma coincidência rara, uma combinação de fatores que expôs as diferenças de nossas interpretações, de forma não intencional, como em ilusões de óticas (que fazem o mesmo o tempo todo sem gerar alarde).

Mas para mim a coisa mais importante que isso revelou é que a maior parte de nós confia muito nos próprios sentidos, mesmo não conhecendo muito bem o próprio funcionamento, algo que considero altamente insaudável, quando o conhecimento está a disposição de todos, ou pelo de todos aqueles que participaram desse viral. Muitos dos que discutiram vigorosamente não pararam para analisar e pesquisar mais profundamente. Eu mesmo já estou acostumado com esse tipo de cenário e tenho experiência em ilusões de ótica, mas não escrevi nenhum artigo prontamente (como tantos fizeram) porque queria ter mais firmeza sobre o que ia dizer, e mais precisão, pois firmeza eu poderia ter sobre caracteríticas gerais que causaram isso, mas ser mais preciso quanto a este viral em questão tomou mais tempo e testes. Respostas prontas e imediatas não são amigas do conhecimento.


LINKS EXTRAS:

Fotos do vestido (original sempre no meio) com variações no/na:

Fundo
Saturação
Balanço de cores

Gif do vestido usando a adaptação temporária à luz (não é a mesma questão do viral, mas é interessante):

Para quem viu branco e dourado
Pra quem viu azul e preto

Ilusões de ótica e alguns fenômenos óticos:

ilusões de ótica: http://www.michaelbach.de/ot/ (um dos sites mais completos que já encontrei até hoje)
Ponto cego: //pt.wikipedia.org/wiki/Ponto_cego
Moscas Volantes: //pt.wikipedia.org/wiki/Moscas_volantes
Persistência da visão: //pt.wikipedia.org/wiki/Persist%C3%AAncia_da_vis%C3%A3o
Estereoscopia (ou visão binocular, tridimensional, etc): //en.wikipedia.org/wiki/Stereoscopy


REFERÊNCIAS:

A maior parte das referências infelizmente está em inglês, mas estou traduzindo várias dessas páginas nesse momento. Estou dando preferência a links do wikipedia por serem mais simples, completos e estruturados, e com mais referências ainda dentro deles, eu chequei cada uma dessas páginas para conferir sua fiabilidade:

http://www.cambridgeincolour.com/pt-br/tutorials/color-black-white.htm

//en.wikipedia.org/wiki/Additive_color

//en.wikipedia.org/wiki/Color_constancy

//en.wikipedia.org/wiki/Color_vision#Subjectivity_of_color_perception

//pt.wikipedia.org/wiki/Raia_espectral

//en.wikipedia.org/wiki/Retina

//en.wikipedia.org/wiki/Subtractive_color

//pt.wikipedia.org/wiki/Temperatura_de_cor

//pt.wikipedia.org/wiki/Vis%C3%A3o

 

Guilherme Ferreira Franco

Guilherme Ferreira Franco

Adepto do ceticismo científico e divulgador da ciência pela UR e pelo Clube de Astronomia Louis Cruls (CALC). Faz licenciatura em física, e desenvolve atividades com eletricidade, eletrônica, informática e outras tecnologias desde 2008.