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A ciência brasileira em uma encruzilhada: Os impactos da PEC 55 e outros projetos no desenvolvimento científico brasileiro

   Tramita no Senado a PEC 55, que já foi aprovada em dois turnos na câmara dos deputados com o nome de PEC 241 e recentemente, em primeiro turno, no Senado. Basicamente a proposta tem como objetivo traçar diretrizes orçamentárias para o Brasil para os próximos 20 anos, congelando os investimentos em diversas áreas.

   O objetivo desse texto é compreender o impacto da PEC 55 no desenvolvimento científico brasileiro e como ela pode impor retrocessos significativos para a pesquisa no Brasil. Muitos cientistas, frente a essa situação, já demonstram profundas preocupações com sua possível aprovação.

  Paulo Artaxo, físico da Universidade de São Paulo (USP) e membro do painel climático da ONU, foi categórico em relação a PEC: “Quando você não investe nas universidades em 20 anos está condenando o país a um atraso intelectual muito grande em relação ao resto do mundo. Todo brasileiro deve ficar muito preocupado com esta questão”(1). Ele não foi um dos únicos a demonstrar preocupação em relação a PEC 55. Segundo o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich, afirmou: “Se continuarmos na situação atual por mais 20 anos será mortal; vamos voltar ao status de colônia extrativista”, disse Davidovich ao Estado. “Na verdade, não digo nem 20 anos. Se for cinco, já será extremamente complicado.”(2)

   Essa possibilidade de estagnação dos investimentos vem justamente no período em que o país apresentou importantes avanços na última década.  Dentre esses fatores estão:

  A formação de mestres e doutores cresceu significativamente nos últimos 20 anos no Brasil.  Segundo um estudo realizado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma organização de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), em 2014 o Brasil formou 50,2 mil mestres e 16,7 mil doutores, um número 401% superior comparado 1996, onde foram formados   10,4 mil mestres e 2,8 mil doutores.(3)

   Além disso, as publicações científicas de autores brasileiros   em revistas de alto impacto apresentam uma dinâmica de crescimento. Segundo a revista Nature, os brasileiros passaram de 630 artigos publicados em 2013 para 715 artigos, nas áreas de Química, Ciências da Vida, Terra e ambiente e Ciências Físicas.(4) Obviamente ainda são números modestos que não representam o potencial brasileiro, mas possibilitam observar  uma dinâmica de avanços na ciência nacional  no último período.

   No entanto, um dos reflexos mais significativos desse avanço é a participação de cientistas brasileiros em pesquisas de grande impacto como: A descoberta da vacina contra esquistossomose desenvolvida na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, sob a coordenação da médica e pesquisadora Miriam Tendler (5). Assim como a participação de pesquisadores brasileiros que evidenciaram  uma correlação entre Zica vírus e microcefalia (6); E o desenvolvimento de anticorpos que neutralizam o vírus HIV(7); Além da participação de sete pesquisadores brasileiros no consórcio que detectou as ondas gravitacionais neste ano( 8). Esses fatos apontam a uma maior inserção de brasileiros em pesquisa de ponta.

  Porém, apesar dos relativos avanços do último período, o cenário atual da pesquisa brasileira vem sendo marcado por fortes retrocessos em relação a incentivo ao desenvolvimento científico no país. As ações mais categóricas que impõe esse retrocesso foram: A extinção do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI), pelo governo Temer. Além da reestruturação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que “rebaixou” o CNPq, a Finep, a AEB e a CNEN ao quarto escalão da hierarquia administrativa da pasta (9).

   Como se isso não bastasse, houve uma redução significativa no orçamento destinado a ciência brasileira nos últimos 2 anos. O orçamento destinado ao extinto ministério da ciência esse ano foi de 4,6 bilhões. Esse valor é 52% menor que o investido em 2010.  Para 2017 a previsão do orçamento destinado ao MCTIC é de 5,7 Bi, um valor aparentemente maior. No entanto esse financiamento será compartilhado com o extinto Ministério da Comunicação(10).

   Já os orçamentos do CNPq e CAPES também tiveram uma significativa redução em seus respectivos orçamentos. Em 2014 o orçamento do CNPq era de 2,8 bilhões, já em 2016 a estimativa de gasto é de 1,5 bilhões. A Capes que teve um orçamento recorde em 2015 de 7 bi, despencou para 5,30 bilhões em 2016, assim como a redução orçamentária do FNDCT/FINEP.

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Frente esse patamar de redução do orçamento na ciência brasileira está colocada a aprovação da PEC 55 na qual estabelece:

“Art. 101. Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 102 a 109 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”

I – para o exercício de 2017, à despesa primária paga no exercício de 2016, incluída os restos a pagar pagos e demais operações que afetam o resultado primário, corrigida em 7,2% (sete inteiros e dois décimos por cento);

II – para os exercícios posteriores, ao valor do limite (grifo meu) referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do

Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária.(11)


Assim, segundo o texto, o gasto limite está condicionado apenas ao reajuste da inflação, em relação ao ano anterior. Cabe ressaltar que o reajuste limitado a inflação não significa que anualmente o orçamento do país será reajustado. Por exemplo, se em um ano os investimentos sofrerem reajuste abaixo da inflação (ou nenhum reajuste), no ano subsequente não será permitido investimentos que recuperem a inflação dos dois últimos anos. O resultado prático será um achatamento dos investimentos brasileiros nas áreas sociais a cada ano.

  Isso, na prática, acaba condenando o país por 20 anos a não ter um aumento nos investimentos nas áreas de pesquisa, educação, saúde, etc. O resultado prático faz com que o Brasil retroceda exponencialmente no seu desenvolvimento científico. Nesse sentido, a ampliação de bolsas de mestrado e doutorado, pós-doutorado, a construção de centros de pesquisas e universidades estará inviabilizada caso a PEC 55 seja aprovada.

   E a estagnação do desenvolvimento científico trará impactos profundos para o país. Isso porque o desenvolvimento científico é um mecanismo para buscar soluções criativas para problemas complexos como a crise energética, mudanças climáticas, cura de doenças, preservação de espécies, compreensão do universo, etc. Além disso, o progresso da ciência nacional está diretamente relacionado com a soberania nacional.

   No entanto, o avanço da ciência e sua divulgação é um poderoso antídoto contra toda forma de charlatanismo religioso e de pseudociências que se aproveitam da ignorância da população para lhe tirar vantagens financeiramente e emocionalmente. Isso porque uma população mais esclarecida dos fenômenos naturais tem maiores condições de rejeitar e repelir propostas absurdas para resolução de problemas reais.

   Nesse sentido, as forças conservadoras brasileiras parecem sedentas para aniquilar o modesto desenvolvimento cientifico brasileiro, mas não só isso… parece que suas pretensões são mais ousadas, dentre elas, se passa por consolidar a completa ignorância científica entre os brasileiros. Existem dois projetos que buscam reformas na educação brasileira que contam com o entusiasmado apoio da bancada evangélica. Os projetos são: Escola Sem Partido e a Reforma de Ensino Médio-Medida Provisória (MP) 746/2016. Na prática, os dois projetos propõem um profundo retrocesso no ensino da ciência nas escolas brasileiras.

   Sobre a Escola Sem Partido já existe um texto publicado no UR, mas apenas um breve comentário.  O texto do projeto Escola Sem Partido propõe: “-VII – Direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Ou seja, se os pais reivindicarem que seus filhos recebam formação na escola antagônica ao conhecimento cientifico como, criacionismo, negação da teoria da evolução, etc. caberá ao estado garantir o ensino de concepções religiosas nas aulas de ciência.

   Já sobre a reforma do ensino médio, propõe que: o ensino a partir do 2° ano do segundo grau, o aluno possa escolher módulos de ensino. O que na prática impõe um ensino mais estreito em relação ao conhecimento. Caso um jovem goste de estudar literatura, por exemplo, ele poderá optar em não receber o ensino de Ciências da Natureza. Isso é extremamente grave, não pela decisão de sua profissão futura, mas sim, por a partir de sua escolha a escola não proporcionar nenhuma formação científica a esse jovem. Como afirmou Neil deGrasse Tyson: “O objetivo aqui não é transformar todos em cientistas. Que mundo chato seria esse. Nós queremos artistas, músicos, romancistas, poetas. Queremos tudo isso….O que importa é que estejam alfabetizados cientificamente e que mantenham essa alfabetização e essa curiosidade ao longo da vida”

   Nesse sentido, o que está em jogo no Brasil não é apenas uma luta em defesa do orçamento da ciência brasileira ou das pesquisas que vem sendo realizadas. O que está em jogo é algo muito mais profundo, trata-se da defesa do conhecimento perante a ameaça da ignorância e do obscurantismo religioso. Barrar esses retrocessos, é talvez, o gesto mais belo que uma pessoa pode ter em sua vida, que é lutar com todas suas energias para que as futuras gerações recebam o mundo em melhores condições na qual nós o recebemos.

Referências:

 

1)http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2016/10/12/pec-condena-pais-a-atraso-intelectual-de-20-anos-diz-cientista-da-usp.htm

2)http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/pesquisadores-temem-desastre-na-ciencia-com-aprovacao-da-pec-241/

3)http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,numero-de-mestres-e-doutores-quintuplica-em-20-anos-no-brasil,10000061216

4)http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/06/ranking-da-nature-que-mede-impacto-da-ciencia-poe-brasil-em-23-lugar.html

5) http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/05/19/vacina-contra-esquistossomose/

6) http://www.nature.com/nature/journal/v534/n7606/full/nature18296.html

7)http://agencia.fapesp.br/pesquisadores_brasileiros_desenvolvem_nanoparticulas_que_podem_inativar_virus_hiv/23779/

8)http://agencia.fapesp.br/brasileiros_integram_consorcio_que_observou_ondas_gravitacionais_e_buracos_negros/22670/

9) http://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/cientistas-criticam-rebaixamento-de-orgaos-vinculados-ministerio-20399109

10) http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/a-ciencia-brasileira-na-uti-2/

11)http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getTexto.asp?t=201940

Lucas Sena

Lucas Sena

Mestre e doutorando em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).