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Uma crítica ao argumento ontológico de Gödel para a existência de Deus

Por Julio Lemos
Publicado originalmente aqui

S5 é um sistema modal elegante, mas controverso. Qualquer pessoa acaba por temperar essa visão de que S5 é adequado metafisicamente – até as últimas consequências, ou seja, até o ponto de realmente declarar que os axiomas descrevem a realidade (coisa que apenas… uma minoria lewisiana declara). Kripke, que provou a completude de S5, chama o realismo modal de Lewis de ‘bizarro’ (em Naming and Necessity). E o próprio Lewis admite que sua proposta é contra-intuitiva (em On the Plurality of Worlds), porque se compromete demais ontologicamente ao assumir que os mundos possíveis *existem*. Em grande medida esses comprometimentos ontológicos incluem o axioma 5 (que é o controverso):

Axioma 5. Se é metafisicamente possível que A, então é metafisicamente necessário que é metafisicamente possível que A.

É exatamente esse axioma que o ‘argumento ontológico’ de Gödel (e o de Plantinga) assume nos últimos passos da prova.

Se não aceitamos o axioma 5, não aceitamos o argumento. Ora, ao lidar com metafísica podemos usar sistemas mais fracos, como K, T ou S4; embora sejam sistemas com menor comprometimento ontológico, ao menos estão livres de maiores polêmicas. Não de todas.

E portanto o argumento de Gödel não é cogente.

Vamos ver aos detalhes.

Antes disso, uma ilustração de como argumentos lógicos podem ser corretos, mas não cogentes. Considere o quinto postulado de Euclides, o postulado da paralela. Tido como auto-evidente por Euclides e muitos antes e depois dele, o postulado foi mais adiante questionado (já por Proclo, acho que no século V dC). Toda a geometria euclidiana se segue dos postulados de Euclides: tudo rigorosamente demonstrado. É possível, assumindo os postulados, negar os teoremas de Euclides? Não. Mas posso questionar um dos  postulados? Sim; é o que fizeram, por exemplo, Lobachevski e Riemann. O primeiro criou a geometria hiperbólica e o segundo, a elíptica. Na hiperbólica praticamente tudo o que sabemos sobre triângulos tem de ser revisto, pois não vale o quinto postulado.  Aparentemente era uma brincadeira matemática. Mas mais tarde Minkowski forneceu as bases matemáticas para a física da relatividade especial, usando um espaço definido com ortogonalidade  hiperbólica. A geometria euclidiana é correta, *assumidos os axiomas*; mas podemos negá-los e deduzir uma nova matemática. Até hoje os físicos não sabem qual geometria é mais adequada para o universo. Assim como metafísicos não estão de acordo – nesse terreno pantanoso, e a meu ver pouquíssimo confiável, da filosofia – sobre qual a melhor teoria metafísica. Ou sobre a lógica mais adequada para a metafísica, apesar da elegância de S5.

Agora, aos sistemas modais. Vou usar M para “é possível que” e N para “é necessário que”.

Sistema K. Lógica proposicional mais a regra da necessitação (se A é um teorema de K, então também o é NA) e o axioma da distribuição N(A->B)->(NA->NB). M é introduzido como ~N~, ou seja, MA = ~N~A.

Sistema M. Adionamos o axioma M, que diz que NA->A, ao sistema K.

Sistema S4. Adicionamos o axioma 4, que diz que NA->NNA, ao sistema M.

Sistema S5. Adicionamos a M o axioma 5, que diz (como acima em linguagem natural):

MA->NMA.

Para a coisa ficar mais interessante, podemos falar em semântica de mundos possíveis. Introduzimos o conjunto W de mundos possíveis. Em vez de falarmos em valores de verdade simpliciter (p é verdadeiro, p é falso), falamos que A é verdadeiro no mundo w /in W.  Então introduzimos uma relação de acessibilidade R entre membros do conjunto W, para dizer wRw’ = o mundo w acessa o mundo w’. Então A é possível em w sse para algum w’ com wRw’, w’|= A. A é necessário (NA) em w sse, para todo w’ com wRw’, w’|= A. Usamos |= para a relação de consequência semântica. Da mesma forma definimos a semântica para a negação e implicação.

As propriedades da relação de acessibilidade R podem (com a noção de frame) ser usadas para definir as semânticas de K, M, S4, S5. Por exemplo: se R é transitivo, ou seja,

wRw’&w’Rw”->wRw” temos S4. Já S5 induz uma R ‘euclidiana’, ou seja: wRw’&wRw”->w’Rw”.

Além disso, ela é reflexiva, transitiva e simétrica (uma relação de equivalência em W). Ou seja: em W, todos os mundos são mutuamente acessíveis. Não é difícil provar cada uma dessas propriedades induzidas, usando frames.

Você consegue imaginar um universo em que: 1) mundos possíveis existem, fisicamente; 2) cada um desses mundos enxerga o outro? É possível imaginar. Mas esse é o universo em que vivemos? Não sei. Mas o axioma 5 e a relação R euclidiana na semântica de S5 assumem que (se você não está ‘fazendo lógica’, mas sim ‘fazendo metafísica e pretendendo que a sua notação e o formalismo capturam o universo onde você o seu quadro negro existem’) esse é o seu universo.

Um indício de que S5 é bizarro e contra-intuitivo é tentar fazer, como fazemos com K e outras lógicas, uma tradução temporal ou deôntica de S5. Ah sim, então se é permitido que A, então é obrigatório que seja permitido que A?

Um problema que para mim derruba o axioma 5 incondicionalmente é o seguinte. Vamos escolher um problema de 1 milhão de dólares na matemática, que é da minha área de investigação: P=?NP? O fato é que ou P=NP ou P!=NP. A maioria dos pesquisadores se inclina a dizer que P!=NP: não só nunca encontramos um algoritmo em tempo polinomial para certos problemas (por exemplo, o do vendedor viajante, travelling salesman), como nunca vamos encontrar. Mas isso não está provado. Pois bem: se, como os filósofos normalmente pensam, verdades matemáticas são necessárias, então a possibilidade de que P!=NP, que nenhum matemático até hoje negou, ****implica necessariamente P!=NP****. Ou seja, está provado que P!=NP! Vou lá pegar o meu prêmio de 1 milhão de dólares. Suficientemente creepy? Pois é isso o que se segue do axioma 5.

Por isso a maioria dos filósofos (e quase todos os lógicos) são ‘modalmente agnósticos’. Dificilmente você encontrará alguém que endossa S5 como conjunto de axiomas cogentes metafisicamente; Lewis disse que o fato de ser totalmente contra-intuitivo não o impedia de tentar tirar frutos filosóficos da semântica de mundos possíveis. Realmente, em um mundo acessível ao nosso, macacos caminham usando as suas caudas (piadas como essa são comuns no universo pós-lewisiano). S5 pode ser interessante, mas poucos se comprometem ontologicamente com ele. Ou seja, S5 não é cogente. Um filósofo mais prudente poderia mexer com S5, mas nunca afirmar que o conjunto de axiomas captura a realidade metafísica em sua inteireza inescapável.

E o que me parece mais correto? Isso não importa, pois está demonstrado que S5 (o axioma 5) é controverso quando suas consequências metafísicas são escandidas. Mas eu creio que apenas o atual é existente; ou seja, nada de ‘mundos possíveis’, e muito menos nada de pretender deduzir atualidade de possibilidade!

E que tem a ver S5 com o argumento de Gödel? O problema é que, como eu disse antes, o argumento de Gödel usa o axioma 5 diretamente. E mesmo que não usasse (talvez seja possível pensar em uma versão expurgada de 5 – embora ela não seria mais, assim, gödeliana), ainda temos o problema do comprometimento ontológico modal – e a velha crítica de Kant e Tomás de que não podemos tirar atualidade de possibilidade. Se um filósofo não é obrigado a se comprometer com um determinado esquema metafísico, então ele não é cogente. E nenhum argumento que assuma esse comprometimento será cogente.

Vamos ao argumento de Gödel. Eu ajudei com sugestões para um artigo sobre o mesmo tema de um amigo obcecado com ele.

Não é difícil objetar ‘no mérito’ do argumento. Basicamente, é preciso colocar em dúvida a auto-evidência dos axiomas ou a auto-evidência de que Deus é uma possibilidade. Se não conhecemos Deus (e com isso, teólogos ortodoxos estão de acordo), como diremos se a possibilidade da sua existência é evidente ou não? Com um mero argumento lógico isso é impossível. Pode ser possível para mim que P=NP, no meu exemplo acima, e como é minha área, eu sou obrigado a aferir essa possibilidade. Mas é realmente possível? Se não tenho uma prova, ao dizer: “é possível que P=NP”, estou na verdade chutando. Não tenho elementos para afirmar; se tivesse, eu teria uma prova! E então não preciso mais da ‘possibilidade de x’. Eu já tenho a sua necessidade. Quando lidamos com verdades necessárias, esse problema sempre aparece. E o problema é sério: pode ser que nunca tenhamos uma prova dessa ‘possibilidade’. Eu digo: “é possível que chova hoje”, mas suponha um ser ‘meteorologicamente onisciente’. Ele dirá: “é impossível que chova hoje, porque não temos os fatores para tal”. E todo dia em que não chove, temos uma necessidade de que não choveu (o passado é inalterável) juntamente com a impossibilidade de que tenha chovido. Deus pode estar nessa categoria; lembrando que metafísica é ainda mais sujeita a controvérsias do que a física. Nesse sentido, Findley supõe ter demonstrado, em “Can God’s existence be disproved”, que é impossível que Deus exista. O argumento é cogente? Não. Como o argumento de Gödel, é possível discutir a cogência de cada uma das premissas. Mas eu estou com Quine quando este diz, em sua dispersa, mas consistente, crítica da modalidade – e do essencialismo aristotélico-, que não existe nenhuma propriedade necessária. Eu não entendia a crítica de Quine até ter de lidar com lógica modal quantificada e resolver paradoxos deônticos. (Vai ver é por isso que lógica está ligada aos departamentos de matemática e computação, e cada dia menos lógicos vivem em departamentos de filosofia.)

E os axiomas? Também podem ser colocados em dúvida. Por exemplo, este, que é uma das premissas:

Axioma A5. A existência necessária é positiva.

Em que sentido? “Positivo” aqui é um atributo: ser perfectivo, que é própria de seres perfeitos (uma propriedade é um perfectivo sse não implica negação de um perfectivo). A primeira objeção (com que eu concordo) é que existência não é um atributo. Kant teria um treco se lhe dissessem que A5 é cogente.

O principal problema é o que a literatura em lógica modal chama de “colapso modal”, que ocorre com o argumento de Gödel. Há colapso modal quando obtém-se a conclusão de que qualquer verdade obtida de um sistema modal é necessária. Ora, se qualquer verdade obtida é necessária, então ‘necessário’ e ‘possível’ não são mais uma distinção útil. Esse é o problema de assumir o axioma 5 (que está na lógica subjacente ao argumento) como cogente. Eu não faria isso. Além disso, uma lógica modal S5 de segunda ordem, como é o caso, não é obviamente completa (como é S5 de primeira ordem). Para piorar as coisas, o argumento usa lógica de terceira ordem; pode ser útil usar essas lógicas, mas comprometer-se com a inteligibilidade metafísica dessas lógicas é morte certa. Cf. a crítica de SOBEL, Theism and Logic, Cambridge, 2004, o primeiro a apontar o colapso modal do argumento.

Julio Lemos

Julio Lemos