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Por que a Evolução não é um simples fruto do acaso?

Certa vez, durante a minha graduação em Ciências Biológicas, um professor de uma disciplina de Física apresentou à turma um pequeno problema. Ele nos pediu para que imaginássemos um conjunto formado por alguns palitos. Em seguida, deveríamos calcular as chances de que todos os palitos, ao serem jogados aleatoriamente, caíssem alinhados uns com os outros em uma determinada área. Não me recordo bem o número de palitos e o tamanho da área, mas no final da atividade concluiu-se que se fizéssemos uma jogada a cada segundo, levaríamos um tempo maior do que o tempo de existência do Universo para conseguir alinhar todos os palitos aleatoriamente. No fim, o professor terminou com a frase “alinhar palitos é muito mais fácil que formar uma girafa, por exemplo”.  O meu maior espanto não ocorreu com a colocação do professor. A biologia não fazia parte da sua formação e não era sua obrigação compreender como funciona a evolução. O que mais me assustou foi que uma turma formada majoritariamente por estudantes de biologia havia concordado com tal colocação.

Se apenas a aleatoriedade atuasse na evolução, certamente ainda não existiria vida na Terra. Provavelmente o mais complexo material que encontraríamos no planeta seria alguns tipos de moléculas orgânicas. Formar um ser vivo complexo por pura aleatoriedade também levaria muito mais tempo do que a existência do Universo. No entanto, para a nossa sorte, existe um fator fundamental que gera e direciona a evolução: a seleção.

Imagine o seguinte exemplo. Quais seriam as chances de que um computador programado para digitar aleatoriamente um conjunto de 31 caracteres a cada segundo, formasse a frase “a evolucao e um fato cientifico”? Para facilitar as contas, vamos considerar apenas as teclas referentes às letras do alfabeto e a barra de espaço. Temos então que para cada carácter existem 27 possibilidades (26 letras + a barra de espação). Como a frase é formada por 31 caracteres, as chances dessa frase aparecer aleatoriamente seriam de 1 em 2731. Isso dá um valor de 1/( 2,3565502 x 1044), ou:

1/235.655.020.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000

Isso quer dizer que se o computador fizesse uma tentativa a cada segundo, ele levaria, no mínimo, 7.4674569 x 1036 anos para compreender todas as possibilidades. Isso representa um tempo bilhões de bilhões de bilhões de vezes maior do que o tempo de existência do Universo.

Agora imagine que este mesmo computador fosse programado para gerar várias combinações aleatória de 31 caracteres, e dentre essas combinações, escolher aquela que mais se assemelha à frase “a evolucao e um fato cientifico”. Essa combinação selecionada seria copiada para a geração seguinte, com chances de sofrer mutações em cada letra. Na geração seguinte, novas combinações seriam geradas a partir da combinação escolhida. Dentre essas novas combinações, a mais semelhante à frase alvo seria escolhida novamente para a geração seguinte. Esse processo se repetiria até que se formasse a frase desejada. Note que desta vez adicionamos o fator “seleção” no programa. E ele fará toda a diferença.

Esse tipo de programa recebe o nome de Dawkins’ “Weasel” Program, em referência ao biólogo Richard Dawkins, que o propôs e o criou. É possível “brincar” com esse programa em sites como http://antievolution.org/cs/dawkins_weasel. Na primeira vez que rodei o programa com a frase “a evolucao e um fato cientifico” ele levou 57 gerações para chegar ao resultado esperado, como é possível ver a seguir:

Beginning run

Gen. 1, 4 letters, trskohdcwtxjkptdanty qmsgjajo v

Gen. 2, 5 letters, trskOhdCwtxjkpt anTy qmsgjajo v

Gen. 3, 6 letters, trskOhdCwtxjppt FnTy qmsgjano v

Gen. 4, 7 letters, trskOhdCwtxjppt FnTy qmsgjanI v

Gen. 5, 8 letters, trskOhdCwtxjppt FnTy qmsgjanICv

Gen. 6, 9 letters, trskOhdCwtxjpUt FnTy qmsgjanICv

Gen. 7, 10 letters, t skOhdCwtxjpUt FnTy kmsgjtnICv

Gen. 8, 11 letters, t skOhdCwyxjpUd FnTy CnsgjtnICv

Gen. 9, 11 letters, t skOhdCwydjpUd FnTy CnsgjtnICv

Gen. 10, 12 letters, t skOhdCwydj Ud FnTy CnsgjtnICv

Gen. 11, 12 letters, t skOhdCiydj Ud FnTy CnsgjttICv

Gen. 12, 13 letters, t skOhdCiydj Ud FnTy CIsgjttICv

Gen. 13, 13 letters, t skOhdCiydj Ud FnTy CIsgjttICv

Gen. 14, 13 letters, t szOhdCiydj Ud FnTy CIlgmttICv

Gen. 15, 14 letters, A szOhdCiydj Ut FnTy CIlgmtpICv

Gen. 16, 15 letters, A szOhdCiydE Ut FnTy CIlgmtpICv

Gen. 17, 15 letters, A szOhdCiydE Ut FnTy CIlgmtpICv

Gen. 18, 16 letters, A szOhdCAydE Ut FnTy CIlgmtpICv

Gen. 19, 17 letters, A szOhdCAydE Ut FnTy CIlgTqpICv

Gen. 20, 18 letters, A szOhdCAy E Ut FnTy CIogTqpICv

Gen. 21, 19 letters, A szOhUCAy E Ut FnTt CIjgTqpICv

Gen. 22, 20 letters, A szOhUCAO E Ut FnTt CIjgTqpICv

Gen. 23, 21 letters, A szOhUCAO E Ut FnTt CIjgTIpICv

Gen. 24, 21 letters, A szOhUCAO E Ut FnTt CIjgTIpICv

Gen. 25, 21 letters, A smOhUCAO E Ut FnTt CIjgTIpICv

Gen. 26, 21 letters, A suOhUCAO E Ut FnTt CIjgTIpICv

Gen. 27, 22 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIjgTIpICv

Gen. 28, 23 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIEgTIpICv

Gen. 29, 23 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIEgTIpICv

Gen. 30, 23 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIEgTIpICv

Gen. 31, 23 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIEgTIpICv

Gen. 32, 24 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIENTIpICv

Gen. 33, 24 letters, A suOhUCAO E Ut FnTO CIENTIpICv

Gen. 34, 25 letters, A EuOhUCAO E Ut FnTO CIENTIpICv

Gen. 35, 25 letters, A EuOhUCAO E Ut FnTO CIENTIpICv

Gen. 36, 25 letters, A EuOhUCAO E Ut FnTO CIENTIpICv

Gen. 37, 26 letters, A EuOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICv

Gen. 38, 26 letters, A EuOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICv

Gen. 39, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICv

Gen. 40, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICv

Gen. 41, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 42, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 43, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 44, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 45, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 46, 27 letters, A EVOtUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 47, 28 letters, A EVOLUCAO E Ut FATO CIENTIpICk

Gen. 48, 29 letters, A EVOLUCAO E Ut FATO CIENTIFICk

Gen. 49, 29 letters, A EVOLUCAO E Ut FATO CIENTIFICk

Gen. 50, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 51, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 52, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 53, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 54, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 55, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 56, 30 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICk

Gen. 57, 31 letters, A EVOLUCAO E UM FATO CIENTIFICO

31 Matched! in 57 generations.

Em outras duas rodadas, o programa levou 105 e 73 gerações, respectivamente, para chegar ao resultado esperado. Se o programa revelasse uma geração por segundo, ele levaria de 1 a 2 minutos para chegar ao resultado final. Isso é um tempo muito menor do que os bilhões de bilhões de bilhões de vezes o tempo de existência do Universo.

Note que a combinação de letras foi gerada “ao acaso”, mas a seleção cumulativa ao longo das gerações direcionou essas mudanças, mantendo aquelas que mais se “adequavam” às nossas regras, e excluindo aquelas menos “adequadas”. As combinações selecionadas podiam se “reproduzir” para as próximas gerações. Esse experimento mostra o poder da seleção cumulativa.

A evolução biológica ocorre de forma análoga. O DNA é uma molécula formada por milhares ou milhões de “letras”, os nucleotídeos. Existem quatro tipos de nucleotídeos que compõem o DNA – Citosina (C), Guanina (G), Adenina (A) e Timina (T). A ordem com que esses nucleotídeos estão dispostos ao longo da cadeia de DNA e a quantidade destes nucleotídeos, junto com outros fatores, determina as características do organismo. Toda essa sequência de nucleotídeos é chamada de genoma. Podemos dizer que o genoma, na nossa analogia, é a frase, enquanto os nucleotídeos são as letras. A cada vez que uma célula se divide, todo esse genoma é replicado de forma semiconservativa. Essa replicação está sujeita a falhas, o que insere mutações no genoma (assim como o nosso programa gera mutações aleatórias nas sequências de letras a cada replicação). Essas mutações, se passadas à próxima geração por meio das células reprodutivas (os gametas), podem (ou não) alterar características físicas, comportamentais e/ou fisiológicas. Se essas mutações causarem alterações desvantajosas, o organismo e seus descendentes terão menos chances de sobreviver e passar seus genes para a próxima geração. No entanto, se essa alteração, por menor que seja, trouxer algum benefício para o organismo, este terá mais chances de sobreviver a tempo de passar seus genes para a próxima geração. Como o DNA da próxima geração foi gerado por replicação semiconservativa a partir do DNA da geração anterior, ele não é “embaralhado” do zero, como no primeiro exemplo acima. Ele é copiado a cada geração, como no segundo exemplo, mantendo a maior parte do arranjo das sequências de nucleotídeos. Essa sequência pode ser alterada levemente pelas mutações. Mutações no DNA que geram características vantajosas são selecionadas pelo ambiente, aumentando as chances de reprodução dessas mutações. Esse processo recebe o nome de Seleção Natural. Com o tempo, essas mudanças vantajosas são selecionadas cumulativamente, gerando mudanças físicas significativas. Em 3,5 bilhões de anos de processo evolutivo constante, a vida na Terra foi capaz de se ramificar em milhões de formas distintas.

No entanto, ao contrário do processo evolutivo biológico, nesse programa a seleção não é natural. Havia um objetivo final no programa, que era chegar à frase “a evolucao e um fato cientifico” definido artificialmente por mim.  A evolução biológica não tem um objetivo final, como alguns acreditam. Ela simplesmente acontece. Por outro lado, o programa deixa claro que a seleção é um agente capaz de direcionar e gerar evolução em tempos muito menores que a simples aleatoriedade.

Por isso, da próxima vez que você ouvir que a vida na Terra não poderia apresentar as formas que apresenta por mero acaso, lembre-se do poder da seleção natural. É ela o motor principal da evolução, e, aliada ao tempo, ela é capaz de criar “infinitas formas de grande beleza”.

Fonte: O Relojoeiro Cego – Richard Dawkins – 1986

Gabriel Negreira

Gabriel Negreira

Biólogo, mestre em biologia molecular e atualmente doutorando. Fotógrafo por hobbie e amante da ciência e de sua interdisciplinaridade.