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Percepção de bobagens e informações superficiais. Como as pessoas lidam com o “papo furado pseudo-profundo”.

A Internet está recheada de afirmações duvidosas, textos mal escritos, teorias conspiratórias, pseudociência e outros conteúdos que, em inglês, são classificados popularmente como bullshit. Não há uma tradução precisa para a palavra, mas o entendimento é claro, se alguma coisa é classificada como bullshit, não há crédito intelectual em seu conteúdo. Informalmente, seria algo como papo furado, besteira, blá blá blá, embromation.

Mas o que torna algumas pessoas mais ou menos propensas a aceitar ou rejeitar conteúdos repletos de papo furado?

O estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Waterloo e do Sheridan College avaliou a receptividade ao que eles classificaram como pseudo-profound bullshit, algo como “papo furado pseudo-profundo”, definido como informações identificadas como sem sentido, desenvolvidas para impressionar, mas elaboradas sem preocupação com a verdade ou com a clareza na forma de expressar. Vale ressaltar que o objeto de estudo não é classificar o papo furado como mentira. De acordo com os autores a diferença entre o papo furado pseudo-profundo e a mentira, é que a última é a manipulação deliberada e supressão da verdade em uma informação.

Por sua vez, o aumento da intensidade e importância da comunicação através de meios digitais está diretamente associado ao aumento de informações, assim como da variedade de fontes, sejam elas de especialistas ou não, o que favorece a intensificação da disseminação de papo furado pseudo-profundo.

Sob essa ótica, os autores avaliaram os fatores que predispõem alguém à aceitação de informações de baixa qualidade argumentativa ou sem sentido racional orientado. No entanto, os autores esclarecem que a detecção desse tipo de informação vaga não é simples.

Tomemos por exemplo a frase de Deepak Chopra, utilizada pelos autores em seu trabalho:

“Atenção e intenção são os mecanismos da manifestação.”

Embora possa apresentar algum sentido, a afirmação é consideravelmente vaga, obscura, tendo provavelmente sido elaborada com a finalidade de passar algum grau de profundidade.
Para os autores, um importante atributo do papo furado pseudo-profundo é, portanto, a vagueza. A vagueza é inimiga do sentido, conferindo ao escrito uma máscara de profundidade, impressionando, mas não informando.

O que, então, levaria de fato as pessoas a tratarem informações ruins e vagas como profundas e significantes?

A primeira hipótese dos autores é de que algumas pessoas possam ter uma maior inclinação a aceitar informações como verdadeiras ou profundas. Aparentemente, precisamos acreditar em uma informação para depois compreendê-la. Sendo assim, a hipótese primária é de que as pessoas primeiramente aceitarão a informação falsa/superficial como verdadeira/profunda e, dependendo de seus mecanismos cognitivos, julgará como falsa/superficial ou utilizará a razão para avaliar a proposição.

A segunda hipótese do estudo versa sobre a inabilidade de detecção de papo furado. Neste aspecto, frequentemente os leitores julgam profundo algo que eles não conseguem compreender plenamente. Esse mecanismo de falha na detecção de informações de baixa qualidade é chamado de “falha de controle de conflitos”. Apenas para exemplificar: o controle de conflito é necessário quando duas fontes de informação apresentam dados conflitantes.
É importante salientar que a capacidade de detectar dados conflitantes é vista como um importante fator cognitivo que leva algumas pessoas a se engajarem em processos de raciocínio analítico. Muitos podem ser os fatores impulsionam as pessoas a identificarem a necessidade de ceticismo, dependendo do tipo de informação e o contexto de exposição. Pode haver fontes duvidosas, informação conflitante com o conhecimento comum ou específico, ou até mesmo ser a especialidade do receptor da informação.

O trabalho desenvolvido pelos autores utilizou quatro estudos envolvendo centenas de participantes que avaliaram frases pseudo profundas (frases que, embora aparentem possuir um significado profundo, são apenas um apanhado de palavras organizadas de modo aleatório em sentenças que mantenham a estrutura sintática) em uma escala de profundidade. O objetivo principal foi de desenvolver uma medida de receptividade ao papo furado. Para isso as avaliações foram correlacionadas com fatores individuais que se relacionam com papo furado pseudo-profundo de diversas maneiras, alguns dos fatores avaliados foram:

Pensamento analítico – processos autonomamente reflexivos e processos deliberativos, que requerem esforço. Para os autores, para ser um bom pensador analítico, é necessário que haja capacidade e vontade de se engajar em processos que envolvam a razão.

Confusão ontológica – tanto adultos como crianças tendem a confundir aspectos da realidade. A confusão ontológica pode ser exemplificada na crença de que orações podem curar. Essa característica é fruto da mistura de fenômenos mentais (subjetivos e imateriais) e fenômenos físicos (objetivos e materiais). Dessa maneira a confusão ontológica deve estar associada à maior receptividade a informações de baixa qualidade.

Crenças epistemicamente suspeitas – informações que entram em conflito com concepções naturais são chamadas de epistemicamente suspeitas. A crença em espíritos é um exemplo. A ideia de uma entidade que possa atravessar paredes conflita com a concepção comum de que objetos não podem se mover através de corpos sólidos.

Outros fatores como a crença em conspirações, atividade paranormal e religiosidade foram avaliadas quanto à correlação com os dados de avaliação de profundidade das frases pseudo profundas apresentadas aos participantes dos quatro estudos.

Os resultados apresentados foram, no mínimo, muito interessantes. Foram apresentadas frases pseudo profundas, embora sintaticamente coerentes, nos quatro estudos avaliados. Em todos os estudos essas frases foram avaliadas como apresentando algum nível de profundidade.

Os indivíduos mais receptivos ao papo furado pseudo profundo são também os menos reflexivos, com menos habilidades cognitivas e mais propensos à confusão ontológica, ideias conspiratórias e crenças no paranormal.

Para os autores as explicações recaem sobre dois pontos.

Alguns indivíduos seriam mais propensos a avaliar como profundas afirmações vagas e superficiais. Essa conclusão foi tomada pela alta correlação positiva entre avaliações positivas (frases superficiais avaliadas como profundas) e aceitação de crenças epistemicamente suspeitas.

Os autores citam como exemplo o efeito Forer. Em um experimento clássico em 1949 o psicólogo Bertram Forer deu a cada aluno um teste de personalidade. Um tempo depois o professor distribuiu entre seus alunos uma análise individual de personalidade, baseada nos resultados dos testes. No entanto, todos os alunos receberam a mesma análise, com informações generalizadas e subjetivas. Embora todos tenham recebido o mesmo texto, com 13 proposições a respeito da personalidade individual dos alunos, a menor taxa de aceitação das proposições foi 8/13. Todos os alunos avaliaram o teste como um bom mecanismo de medida de personalidade.

O segundo ponto é que é necessário distinguir a mente aberta não crítica da mente aberta crítica (reflexiva). A primeira é caracterizada pela aceitação passiva de informações, enquanto a segunda busca as informações como meio de facilitação da análise ou reflexão. O estudo identificou que uma maior sensibilidade às informações rasas está associada com melhores performances nas medidas de pensamento analítico. De maneira similar, essas pessoas apresentaram menores índices de crenças paranormais, mas não apresentaram taxas menores na crença em medicina alternativa e teorias conspiratórias. O que talvez explique a grande disseminação de práticas duvidosas como a medicina oriental e a homeopatia entre pessoas com alto grau de formação. Além disso, a crença no espiritual conflita intensamente com conceitos do cotidiano.

Os autores indicam que o desejo autônomo de parar e pensar analiticamente sobre o sentido das palavras e suas associações forma uma defesa contra a aceitação de papo furado. O estudo também apresenta evidencias sobre a importância da inteligência verbal como ferramenta da análise critica, ou seja, o conhecimento do significado real das palavras pode revelar inconsistências, incongruências e conflitos entre os termos apresentados em frases rasas. Citando outros estudos, os pesquisadores mostram que a aceitação de papo furado também pode ser permeada por elementos não esclarecidos. As pessoas podem simplesmente acreditar que as frases apresentadas em um estudo psicológico são elaboradas com a finalidade de apresentar algum sentido. A dificuldade em encontrar um sentido literal poderia, inclusive, levar os participantes a acreditarem que isso seja evidencia de grande profundidade. Não podemos esquecer que o uso da ambiguidade é comum na literatura., sendo utilizada por poetas como ferramenta literária para forçar o leitor a criar um sentido.

Os pesquisadores concluem que o uso de afirmações e frases superficiais é uma ferramenta na tentativa a resposta de interlocutores. O papo furado não é só comum como também é popular. Chopra é um entre muitos exemplos. O uso de vagueza e ambiguidade como máscara para encobertar a falta de significado profundo.

De maneira similar podemos citar os vários autores criticados por Sokal e Bricmont em “Imposturas Intelectuais”, o livro é uma referência à falta de sentido e obscuridade apresentada por filósofos e cientistas sociais pós-modernos. Em um trecho da obra os autores citam a paixão de Lacan por números e fórmulas matemáticas, comumente presentes em seus trabalhos, mas com significado obscuro.

Um exemplo deste uso indevido é apresentado na obra:

Da minha parte, começarei pelo que se articula na sigla S(0), que é, antes de tudo, um significante (…) E posto que a bateria de significantes, enquanto tal, é por isso mesmo completa, este significante não pode ser mais que um traço que surge desde seu círculo sem que se possa contar como parte dele. Pode simbolizar-se mediante a inerência de um (-1) no conjunto total dos significantes. Como tal, é impronunciável, mas sua operação não é, já que esta é a que se produz cada vez que é pronunciado um nome próprio. Seu enunciado se iguala a seu significado. Assim, calculando esse significado segundo o método algébrico que utilizamos, temos: S (significante)/ s (significado) = s (enunciado); sendo S = (-1), dá como resultado: s = raiz de -1 (LACAN, 1999, p. 42)

Embora possa parecer profunda, a afirmação acima não possui qualquer valor matemático, nem mesmo a barra tem função de divisão. Até mesmo o suposto valor psicanalítico dos números imaginários é profundamente questionável. O livro segue mostrando a fragilidade do discurso pós-moderno. Outro ponto marcante é a afirmação da autora Luce Irigaray, que no frenesi de símbolos que representem a perpetuação do machismo na sociedade conseguiu encontrar sexismo na equação da relatividade, e afirmou que a dificuldade da física nos estudos de fluidos desenvolve-se como resultado do machismo, já que a fluidez está associada à feminilidade e os sólidos ao falo masculino. Não é preciso comentar o tamanho da bobagem presente nesta afirmação.

Tais fatos não impedem que ideias associadas afirmações bizarras e textos nonsense sejam popularizados. Os motivos estão abertos, mas pela leitura do trabalho podemos concluir que a junção de pensamento analítico deficiente, confusão ontológica, crenças epistemicamente suspeitas, etc., podem estar diretamente associadas à popularização de ideias pós-modernas, pseudociências e discursos políticos recheados de demagogia e populismo.
Sagan estava certo: o pensamento crítico, associado ao ceticismo, é essencial para detecção de toda sorte de papo furado e certamente uma importante ferramenta em uma sociedade profundamente interligada, onde o fluxo de informações constante é indissociável do cotidiano.

Adelino De Santi Júnior

Adelino De Santi Júnior