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O fiasco com a fosfoetanolamina mostra que “de boas intenções, o inferno está cheio”

Esclarecimento: após a publicação deste artigo, algumas pessoas criticaram o uso da palavra “fiasco” no título, achando que isso se refere à fosfoetanolamina. Na verdade, eu quis dizer que a decisão dos políticos de aprová-la sem as devidas provas de que ela funciona é um fiasco, e não a substância em si.

Atualização: Em 5 de abril, o STF decidiu proibir a fabricação de mais fosfoetanolamina, citando a falta de estudos (confiáveis) que atestem sua eficácia e segurança entre os motivos, que é exatamente o que abordo neste artigo. Parabenizo a lucidez do ministro Lewandowski!

Atualização 2: De acordo com o Estadão, “A pílula do câncer falhou em mais um teste, o sétimo” e “Resultado de análises com pâncreas, melanomas e pulmão foi tão desanimador que pesquisadores chegaram a sugerir a interrupção dos trabalhos.” Matéria: http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,pilula-do-cancer-falha-em-mais-um-teste-o-setimo,10000057952

Em 23 de março, o Senado aprovou a “produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética (…) independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância”. O projeto agora segue para sanção presidencial. Como farmacêutico-bioquímico, fiquei muitíssimo perturbado com essa decisão, pois ela vai contra os mais elementares princípios científicos e medidas de segurança de saúde pública, já que a substância não foi devidamente testada para que saibamos quais possíveis efeitos negativos ela pode ter, ou mesmo se ela realmente tem algum efeito curativo. O que é mais grave ainda, essa decisão abre um precedente para que mais substâncias que não tiveram sua eficácia e segurança comprovadas sejam novamente aprovadas para uso, e desta vez para doenças mais comuns e menos mortais que o câncer. Este é meu verdadeiro medo.

Nos próximos parágrafos, explicarei da forma mais simples possível tudo o que é necessário saber para entender esta questão. Meu objetivo é que você, leitor, mesmo que não tenha formação na área de saúde, possa entender perfeitamente por que aprovar essa substância em caráter excepcional para o tratamento de pessoas com câncer (que à primeira vista parece uma ação nobre e bem intencionada) na verdade é uma tragédia anunciada.

Antes de mais nada, é fundamental entender o que é o efeito placebo.

Mens sana, corpore sano

“Placebo” é como é chamado um comprimido (ou pílula, ou líquido, ou qualquer outra forma pela qual um medicamento possa ser administrado) que não contém qualquer substância curativa, mas que tem a exata aparência do medicamento contendo essa substância, de forma que o paciente não tem como saber se o que ele está tomando contém a substância curativa ou não. Quando alguém toma um placebo crendo ser o medicamento real, e isso provoca alguma melhora perceptível no estado do paciente, dizemos que ocorreu o “efeito placebo”.

Suponhamos que você está com dor e eu digo que irei te dar uma cápsula de dipirona (um analgésico). Porém, eu abro a cápsula e substituo o pó branco contendo dipirona por farinha (que também é um pó branco) sem que você veja, e dou para você tomar. Incrivelmente, você provavelmente relatará em breve que sua dor passou! Isto ocorre porque você acredita no efeito do remédio, e esta crença faz com que seu corpo libere substâncias que reduzem a dor. É muito provável que sua dor não teria diminuído se eu te contasse que eu troquei a dipirona por farinha, pois aí você não teria mais motivos para crer no remédio. O mais fascinante é que efeito placebo funciona para praticamente qualquer tipo de doença, inclusive o câncer e infecções (casos nos quais se supõe que a crença na cura fortaleça o sistema imunológico para combater as células cancerosas e micro-organismos invasores, respectivamente), e funciona também para outros procedimentos que não a tomada de um remédio, como por exemplo, a crença na ajuda de uma divindade (tenho fortes suspeitas de que pelo menos grande parte dos “milagres de cura” observados em cultos de igrejas sejam devidos ao efeito placebo).

O efeito placebo é tão poderoso e importante que as empresas farmacêuticas gastam bilhões de dólares todos os anos dando placebos para os pacientes, através dos chamados estudos (ou ensaios) clínicos, apenas para tentar provar que seus remédios funcionam e que não é o efeito placebo que está provocando a melhora observada. Isto é, remédios que passam por estudos clínicos e eventualmente são introduzidos no mercado para consumo geral da população são mais eficazes que o efeito placebo por si só.

A importância dos estudos clínicos

Toda empresa farmacêutica que quiser que um novo medicamento que ela desenvolveu seja aprovado para comercialização em um determinado país precisa antes provar para a agência regulatória de saúde daquele país (que no caso do Brasil é a Agência de Vigilância Sanitária, ANVISA) que esse medicamento é mais eficaz do que o placebo. Isto é feito através de estudos clínicos, que geralmente duram mais de 10 anos e envolvem milhares de pacientes, ao custo de muitos milhões de dólares cada.

Suponhamos que uma empresa farmacêutica queira aprovar o Parkisonix®, um novo medicamento que supostamente reduz os sintomas da doença de Parkinson. Antes de poder administrar o medicamento a qualquer ser humano, é exigido por lei que ele seja administrado a várias espécies de animais. Se qualquer delas tiver sintomas muito graves, a continuação do processo é barrada, o medicamento é considerado arriscado demais e a empresa é forçada a abandonar seu desenvolvimento.

Tendo passado nessa fase inicial com animais, o medicamento é administrado a alguns poucos voluntários humanos saudáveis (sem Parkinson). Infelizmente, já aconteceu de medicamentos novos terem se mostrado completamente inofensivos em ratos, camundongos, cães, chipanzés e outros animais testados na fase inicial, mas que provocaram reações alérgicas gravíssimas quando foram aplicados aos voluntários humanos, inclusive matando-os. Assim, como você pode imaginar, a ocorrência dessas coisas em seres humanos saudáveis também acaba com quaisquer chances do medicamento ser lançado.

A próxima fase é administrar o medicamento a voluntários doentes. No caso de Parkinsonix®, isso envolveria recrutar centenas ou milhares de pacientes com doença de Parkinson, administrar o medicamento a eles, e registrar se houve alguma melhora em seus sintomas. Porém, em geral, metade desses pacientes não recebe Parkisonix®, mas sim placebo. E relembrando que elas não terão forma de saber se é placebo ou não. Não adianta nem tentar perguntar para os funcionários do estudo que têm contato direto com os pacientes, pois eles também não saberão! A empresa farmacêutica não informa aos funcionários que cuidam dos pacientes quem está recebendo placebo ou não, para evitar quaisquer possibilidades de eles revelarem essa informação ao paciente, mesmo sem querer. Essa técnica de experimentação é chamada de “duplo-cego”, onde “duplo” significa “tanto o paciente quanto os médicos”.

Se a metade dos pacientes que recebeu Parkisonix® não tiver melhora nos sintomas significativamente maior que a metade que recebeu placebo, concluir-se-á que Parkisonix® não funciona, e a empresa potencialmente terá gasto anos de trabalho e centenas de milhões de dólares para nada.

Mas por que recrutar tantos pacientes? Por dois motivos principais: 1) Cada organismo é diferente, e algumas pessoas podem ter um metabolismo tão diferente da média que o medicamento não funciona direito para elas. Um grande número de pacientes significa que há maior probabilidade do estudo recrutar um desses pacientes “exceção”, e assim poder determinar se um aumento ou redução da dose faria o medicamento funcionar melhor para essas pessoas; e 2) Para tornar os dados estatisticamente mais confiáveis. Quanto maior o número de pacientes no estudo, menor a probabilidade que os resultados positivos observados (o medicamento funciona melhor que o placebo) sejam resultado apenas do acaso. Em outras palavras, quanto mais pacientes houver no estudo, maior a confiança com que se pode dizer que os resultados observados no estudo correspondem à realidade.

Em resumo, todo este longo, caro e elaborado processo serve para garantir que a nova substância não é muito perigosa, que ela funciona, e que ela não tem efeitos indesejados muito graves mesmo após um longo tempo de uso. A fosfoetanolamina, no entanto, foi aprovada sem passar por nada disso. É possível que constataremos,  daqui a alguns anos, que 90% das pessoas que tomaram a fosfoetanolamina desenvolveram cirrose do fígado, por exemplo. Se ela houvesse passado por um estudo clínico como todas as outras substâncias candidatas a tratamento, essa situação haveria sido detectada e muitas vidas poderiam ter sido salvas. Assim, fica fácil perceber como essa aprovação da distribuição é um grave atentado à saúde pública e aos princípios científicos mais elementares.

“Pílula do câncer” é um termo extremamente cretino

A fosfoetanolamina vem sendo referida na mídia, de forma totalmente irresponsável, como a “pílula do câncer” ou mesmo “a cura do câncer”. Pergunto: qual câncer? Ao contrário do que comumente se pensa, “câncer” não é uma única doença, mas o nome que se dá a um conjunto de doenças completamente distintas. Os tratamentos que funcionam para o câncer de fígado podem não fazer qualquer efeito no câncer de tireoide, ou podem mesmo piorar a situação do paciente. Como explica o médico oncologista Dráuzio Varella em seu vídeo sobre a fosfoetanolamina, mesmo o câncer de mama tem mais de 20 subtipos, cada qual com suas características específicas, e portanto tratamentos específicos. Dizer que a fosfoetanolamina é a “cura do câncer”, sem dizer para qual exatamente das dezenas de tipos e subtipos de câncer ela serve, é de uma ignorância absurda. Esperar que uma substância cure qualquer câncer é tão válido quanto esperar que uma única substância cure a depressão, hipertensão arterial, vertigem, artrite, deficiência de vitamina D, pneumonia, hepatite e esquizofrenia, e ainda tire unhas encravadas.

Mas é claro, não dá para saber para qual câncer a fosfoetanolamina serve, porque não deu tempo disso ser estudado antes dos políticos a aprovarem!

Perguntas que os leitores provavelmente farão e suas respostas

Uma pessoa que conheço usou a fosfoetanolamina e teve melhora em seu câncer, isso não é prova de que a substância funciona?
Não. Relatos de melhora de algumas pessoas não valem como prova de nada, pois tal melhora pode muito bem ter ocorrido devido ao efeito placebo, ou mesmo por aleatoriedade (a melhora teria ocorrido de qualquer forma sem a pessoa tomar nada). Além disso, é comum que a doença dessas pessoas volte a piorar depois, ou a substância provoque algum efeito indesejado muito grave após certo tempo, e isso infelizmente não costuma ser espalhado aos quatro ventos como as histórias de melhora são. Somente após um estudo clínico ao longo de vários anos e com centenas de participantes é possível tirar conclusões válidas sobre a eficácia e segurança de uma substância.

Se a fosfoetanolamina “furou a fila” em caráter excepcional, deve ser porque os estudos preliminares realizados até agora indicaram que ela pode funcionar, não é?
Infelizmente, não. Na verdade, é justamente o contrário! Testes preliminares em células tumorais in vitro (isto é, células mantidas vivas em um tubo de ensaio em um laboratório, fora de um organismo vivo) indicaram que a fosfoetanolamina não possui nenhuma atividade antitumoral significativa. Isto não quer dizer, porém, que ela não possa ter essa atividade dentro de um organismo vivo, pois nesse caso há vários fatores metabólicos que entram em jogo e podem alterar a ação de uma substância. Mas para determinar se isso ocorre, são necessários estudos clínicos!
A aprovação em caráter excepcional da substância não foi baseada em nenhum critério lógico ou científico. Simplesmente correram histórias de que ela estava funcionando para algumas pessoas (o que não é prova de nada, como respondido na pergunta acima). Isso gerou uma onda de esperança na comunidade de pacientes com câncer, que fez abaixo-assinados que foram entregues aos políticos, os quais não entendem nada do assunto. A decisão foi totalmente demagógica, e não científica, e nem sequer deveria ter sido feita pelos políticos, pois isso cabe à ANVISA! Em resposta a isso, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo tomou a corretíssima decisão de processar judicialmente e caçar a licença de médicos que prescreverem a fosfoetanolamina enquanto ela não for aprovada pela ANVISA.

Se a pessoa já tentou de tudo e mesmo assim seu câncer continua piorando, qual é o problema de experimentar a fosfoetanolamina?
A princípio não há grande problema, pois essa pessoa já terá tentado todos os procedimentos medicamente recomendados. A tragédia dos métodos alternativos e não validados de tratamento do câncer (urinoterapia, vitaminoterapia, homeopatia, cristaloterapia, florais de Bach, etc.) é que com alarmante frequência, os pacientes deixam de fazer quimioterapia, radioterapia ou outros tratamentos comprovadamente eficazes para tratarem-se APENAS com o novo método “milagroso”. Quando a pessoa finalmente percebe que o método não funciona, o tumor muitas vezes já terá crescido ou sofrido metástase (terá se espalhado para outras partes do corpo), e daí já será tarde demais para salvar o paciente.
E sem falar que esses métodos alternativos frequentemente são oferecidos por charlatães, que cobram fortunas por procedimentos que praticamente não custam nada para serem realizados, se aproveitando do desespero, desinformação e credulidade da vítima.

Isso tudo não seria um complô da indústria farmacêutica para evitar que a cura do câncer seja levada para frente, pois a indústria perderia muito dinheiro com os quimioterápicos que deixaria de vender?
Este é um argumento comum que, à primeira vista, até faz sentido lógico. Mas o que as pessoas não percebem é que a indústria pode lucrar muito mais com uma cura! Um exemplo recente disto é o sofosbuvir, novo medicamento contra o vírus da hepatite C. Dos 327 pacientes tratados com o sofosbuvir em um estudo clínico, 295 (90%) não tinham mais o vírus  detectável no sangue 3 meses após pararem de tomar o medicamento (ou seja, estavam curados), um resultado sem precedentes. Se o argumento título desta pergunta fosse verdade, o desenvolvimento do medicamento teria parado por aí. Mas a empresa que desenvolveu o sofosbuvir foi além e realizou vários estudos clínicos adicionais combinando-o com outros medicamentos já existentes, e descobriu que a combinação de sofosbuvir com um medicamento chamado velpetasvir curou, em um desses estudos clínicos*, 618 dos 624 pacientes, ou seja, mais de 99%! É importante observar que nenhum dos 116 pacientes que receberam placebo foi curado.
Um curso de tratamento completo com sofosbuvir + velpetasvir custa dezenas de milhares de dólares. Tendo em vista as 190 milhões de pessoas ao redor do mundo com hepatite C, o lucro potencial da empresa é de trilhões de dólares, muito mais do que ela ganharia vendendo medicamentos apenas paliativos.

* O estudo em questão: Sofosbuvir and Velpatasvir for HCV Genotype 1, 2, 4, 5, and 6 Infection. N Engl J Med 2015;373:2599-607. DOI: 10.1056/NEJMoa1512610

Érico Bennemann Carvalho

Érico Bennemann Carvalho

Érico é farmacêutico-bioquímico graduado pela Unesp, e atualmente trabalha como tradutor na área farmacêutica. Ele acredita que a mente que se abre a uma nova ideia jamais retorna a seu tamanho original. Assim, gosta de passar o tempo aprendendo sobre assuntos instigantes, como astronomia e relatividade.