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Noam Chomsky contra o pós-modernismo

O seguinte artigo é a transcrição de uma entrevista com o professor Noam Chomsky publicada online pela primeira vez em novembro de 1995, e republicada pela ZNet em 14 de agosto de 2012. Na versão da ZNet, a única alteração feita foi a supressão dos nomes dos entrevistadores. Na presente versão, elaborada com a autorização do professor Chomsky, acrescentei apenas algumas notas de esclarecimento, sempre acompanhadas, ao final, da grafia “N.T.” (nota do tradutor). Registro que a presente tradução em muito se beneficiou da tradução de uma versão anterior do mesmo texto de Chomsky, feita para o português lusitano por Álvaro Nunes para o site Filosofia e Educação, intitulada “Acerca do pós-modernismo, teoria, modas, etc.”, apesar de se diferenciarem em muitos pontos (caros ao público brasileiro contemporâneo, mas talvez não só). Agradeço muitíssimo ao professor Chomsky pela atenção e generosidade diante do meu pedido de autorização para traduzir o texto e divulgá-lo entre o público de língua portuguesa. N.T.

Tradução por Henrique Napoleão Alves
Publicado no Velho Trapiche

Pós-modernismo?

Pelo que pude entender até o momento, o debate foi iniciado pela acusação de que eu, Mike e provavelmente outros, não temos “teorias” e, portanto, não somos capazes de dar qualquer explicação sobre por que as coisas são como são. Por isso, deveríamos nos voltar à “teoria”, à “filosofia” e às “construções teóricas” e similares para remediar essa deficiência nos nossos esforços para compreender e lidar com o que está ocorrendo no mundo.

Minha resposta até agora tem sido a de reiterar algo que escrevi trinta e cinco anos atrás[1], muito antes do “pós-modernismo” ter irrompido na cultura literária e intelectual: “se há um conjunto de teorias, devidamente testadas e verificadas, que se aplica à condução das relações internacionais ou da resolução de conflitos domésticos ou internacionais, sua existência tem sido mantida como um segredo muito bem guardado”, apesar de muita “pose pseudocientífica”.

Até onde sei, essa declaração era correta trinta e cinco anos atrás, e assim permanece; além disso, ela se estende ao estudo dos assuntos humanos em geral, e aplica-se de igual modo ao que foi produzido desde aquela época. O que mudou nesse ínterim, segundo meus conhecimentos, foi a enorme explosão de autoadmiração e mútua admiração entre aqueles que propuseram o que chamam de “teoria” e “filosofia”, dentre as quais pouco pude detectar para além de uma “pose pseudocientífica”. Esse “pouco” é, como já escrevi [em outros textos], por vezes muito interessante, mas sem consequências para os problemas do mundo real que ocupam o meu tempo e as minhas energias (a importante obra de Rawls é a que mencionei, em resposta a uma pergunta específica).

Esse fato já foi notado. Um excelente filósofo e teórico social (também ativista), Alan Graubard, escreveu um interessante artigo anos atrás sobre a resposta “libertária” de Robert Nozick a Rawls e as reações a essa resposta. Graubard ressaltou que as reações foram bastante entusiásticas. Todos os críticos, um a um, enalteceram o poder dos argumentos etc., mas ninguém aceitou nenhuma das conclusões de Nozick para o mundo real (a menos que as tenham previamente alcançado). Isso está correto, como estão corretas as observações de Graubard sobre o que isso significa.[2]

Os proponentes da “teoria” e “filosofia” têm uma tarefa muito simples se quiserem sustentar suas proposições. Apenas tornem conhecido o que era e permanece sendo um “segredo” para mim: ficarei feliz em ver isso. Perguntei muitas vezes antes e ainda aguardo por uma resposta que deveria ser fácil: apenas me deem alguns exemplos de “um corpo de teorias, testadas e verificadas, que se aplica” aos tipos de problemas e questões com os quais eu, Mike e muitos outros (de fato, a maior parte da população mundial, penso eu, fora desses estreitos e incrivelmente autorregulados círculos intelectuais) estamos ou deveríamos estar preocupados: os problemas e questões sobre os quais falamos e escrevemos, e outros problemas como esses.

Para dizer de outro modo: mostrem-nos que os princípios da “teoria” ou “filosofia” que nos dizem para estudar e aplicar conduzem, por meio de argumentos válidos, a conclusões que nós ainda não tenhamos alcançado a partir de outros fundamentos; esse “nós” inclui pessoas que não tiveram acesso à educação formal, e que geralmente parecem não ter problema algum em alcançar essas conclusões muitas vezes por si próprias, se não por meio de interações mútuas que evitam totalmente as obscuridades “teóricas”. Repito: são pedidos simples. Eu os fiz antes, e continuo no meu estado de ignorância. E também tiro certas conclusões disso.

Quanto à “desconstrução” que é levada a cabo (também mencionada no debate), não posso comentar muito, porque a maior parte disso me parece não ter sentido algum. Mas se esse for apenas outro sinal da minha incapacidade de reconhecer profundidades, o caminho a seguir é claro: basta reafirmarem seus resultados em palavras simples que eu possa entender, e mostrarem por que razão são diferentes ou melhores do que o que outros fizeram muito antes e continuaram a fazer desde então sem o uso de palavras truncadas, frases incoerentes e retórica espetaculosa que (ao menos para mim), em ampla medida, não faz sentido algum etc. Isso curará as minhas deficiências – se elas forem curáveis, é claro; talvez não o sejam, hipótese sobre a qual cuidarei posteriormente.

Estes são pedidos muito simples de serem atendidos, desde que haja algum fundamento nas alegações expressas por esses teóricos com tanto fervor e indignação. Mas, ao invés de tentar dar uma resposta a esse pedido simples, a resposta consiste em gritos de raiva: as questões que levanto demonstrariam “elitismo”, “anti-intelectualismo” e outros crimes – embora aparentemente não seja “elitista” permanecer dentro dos círculos de auto e mútua admiração das sociedades intelectuais que falam apenas uns para os outros e que não entram (até onde sei) no tipo de mundo no qual prefiro viver.

Quanto a esse mundo, eu poderia mostrar a minha agenda de compromissos com a redação de artigos e com palestras e conversas com o público para ilustrar o que quero dizer, mas presumo que a maioria das pessoas nessa discussão sabe sobre isso, ou poderia facilmente descobri-lo; e de alguma maneira eu nunca encontro os “teóricos” lá, no mundo que transcende os seus círculos fechados, nem compareço aos seus congressos e festas. Em suma, parecemos habitar mundos muito diferentes, e eu acho difícil ver por que o meu é o “elitista”, e não o deles. É o contrário que parece ser claramente o caso, embora eu não queira sequer me alongar sobre isso.

Para acrescentar outro aspecto à questão, tenho estado absolutamente afogado em convites para proferir palestras e é impossível que eu seja capaz de aceitar uma fração que seja de todos os convites que gostaria de aceitar; por isso, costumo sugerir outras pessoas em meu lugar. Mas, estranhamente, eu nunca sugiro aqueles que propõem “teorias” e “filosofia”, nem os encontro, e para esse tipo de coisas raramente vejo seus nomes em [toda] minha (razoavelmente extensa) experiência com grupos e organizações populares e ativistas, comunidades, faculdades, igrejas, sindicatos etc., públicos daqui e do exterior, mulheres do terceiro mundo, refugiados etc.; posso facilmente dar exemplos. Por que isso ocorre?, eu me pergunto.

Todo esse debate é, por conseguinte, um tanto quanto estranho. De um lado, acusações iradas e denúncias; de outro, o pedido por algumas provas ou argumentos que as fundamentem e ao qual a resposta consiste em mais acusações iradas – surpreendentemente, sem nenhuma prova ou argumento. Mais uma vez, somos levados a perguntar: por que isso ocorre?

É totalmente possível que eu esteja simplesmente deixando de perceber alguma coisa, ou que eu apenas não tenha a capacidade intelectual para compreender as profundidades que foram desenterradas nas últimas décadas pelos intelectuais de Paris e seus seguidores. Mantenho minha mente perfeitamente aberta para essa possibilidade, e assim tenho feito durante anos, quando acusações similares foram feitas, sem que tenha havido qualquer resposta às minhas perguntas.

Uma vez mais, trata-se de questionamentos simples e que deveriam ser fáceis de serem respondidos, se houver mesmo uma resposta; caso eu esteja deixando de perceber ou entender alguma coisa, por favor, mostrem-me o que estou ignorando em termos que eu possa entender.

Claro, se tudo estiver além da minha compreensão, o que é possível, então sou mesmo uma causa perdida, e serei obrigado a recolher-me às coisas que pareço ser capaz de compreender, e a associar-me aos tipos de pessoas que também pareçam interessadas por elas e que pareçam compreendê-las (algo que ficaria perfeitamente feliz em fazer, por não ter nenhum interesse, nem presente nem futuro, nos setores da cultura intelectual engajados em coisas [que me são incompreensíveis], e aparentemente não muito mais do que nelas).

Como ninguém ainda teve sucesso em me mostrar o que estou a ignorar, somos levados à segunda possibilidade: talvez eu seja mesmo incapaz de compreender. Desejo certamente admitir que isso talvez seja verdade, mas receio que ainda devo permanecer desconfiado, por razões que parecem ser boas. Há muitas coisas que não compreendo – digamos, os últimos debates sobre se neutrinos têm ou não massa ou o modo como o último teorema de Fermat foi comprovado. Mas, em cinquenta anos neste jogo, aprendi duas coisas: (1) posso pedir para amigos que trabalham nessas áreas que me expliquem essas questões num nível que eu possa compreender, e eles são capazes disso sem maiores dificuldades; (2) se eu estou interessado na questão, tratar de aprender mais, até que eu venha a compreendê-la.

Ora, Derrida, Lacan, Lyotard, Kristeva etc. – mesmo Foucault, que conheci e de quem gostei, e que é de alguma forma diferente desse restante – escrevem coisas que não só não compreendo, mas a que (1) e (2) não se aplicam: ninguém que diz que os entende é capaz de me explicar e tampouco têm a menor idéia de como proceder para superar as minhas falhas e limitações. Isso nos deixa com duas possiblidades: ou (a) ocorreu algum avanço novo na vida intelectual, talvez uma mutação genérica súbita, que criou uma forma de “teoria” que transcende a teoria quântica, a topologia matemática etc. em complexidade e profundidade; ou (b) …. não irei soletrar.

Novamente: vivi nesses mundos por cinquenta anos, como disse, e realizei uma quantidade razoável de trabalhos nos campos chamados de “filosofia” e de “ciência”, assim como em história intelectual, e tenho um razoável conhecimento pessoal sobre a cultura intelectual das ciências, humanidades, ciências sociais e artes. Isso me deixou com minhas próprias conclusões sobre a vida intelectual, sobre as quais não falarei. Mas, aos outros, sugiro simplesmente que peçam aos que lhes falam sobre as maravilhas da “teoria” e da “filosofia” que justifiquem suas afirmações – que façam o que as pessoas da física, matemática, biologia, linguística, e de outros campos ficam contentes em fazer quando alguém lhes pergunta, com seriedade, quais são os princípios de suas teorias, em que provas se baseiam, o que explicam que já não era óbvio, etc. Estas são exigências razoáveis para serem feitas por qualquer um. Se elas não puderem ser satisfeitas, então eu sugeriria recorrermos ao conselho dado por Hume em circunstâncias semelhantes: às chamas![3]

Um comentário específico: perguntaram-me a quem me refiro quando falo da “escola de Paris” ou dos “cultos pós-modernos”; respondo com a amostra mencionada acima.

Em seguida perguntam, com razão, por que eu repudio esses autores. Tomemos, digamos, Derrida. Deixe-me começar por dizer que não gosto de fazer o tipo de comentários que se seguem sem apresentar provas, mas duvido que os participantes queiram uma análise detalhada de Saussure, por exemplo, neste fórum, e eu sei que não a realizarei. Eu não diria o que estou prestes a dizer sem que alguém não tivesse pedido explicitamente a minha opinião – e, se questionado sobre os fundamentos da minha fala, responderei que não acho que [o objeto das minhas críticas] mereça o tempo que teria que gastar para tanto.

Então, tomemos Derrida, um dos grandes gurus. Eu pensei que deveria pelo menos ser capaz de entender a sua “Gramatologia”, pelo que tentei lê-la. Pensei que seria capaz de entender uma coisa ou outra – por exemplo, da análise crítica aos textos clássicos que pessoalmente conhecia muito bem e sobre os quais escrevi durante anos. Minhas conclusões foram as de que se trata de um estudo aterrador, baseado numa patética leitura equivocada; e os argumentos, tal como estavam, não conseguiram nem chegar perto dos tipos de padrões com os quais estou familiarizado praticamente desde a infância. Bem, talvez eu tenha deixado de perceber algo; pode ser, mas minha desconfiança permanece, como já disse. Novamente, peço desculpas por fazer comentários desacompanhados de provas, mas fui questionado, e, por isso, estou dando a minha resposta.

Encontrei-me com algumas das pessoas desses “cultos” (é assim que me parecem): Foucault (até tivemos uma discussão que durou várias horas, e que está publicada; uma conversação muito prazerosa sobre problemas reais, através de uma linguagem que era perfeitamente compreensível – ele em francês, eu em inglês); Lacan (com quem me encontrei várias vezes e a quem considero um charlatão divertido e perfeitamente autoconsciente, embora sua obra anterior, prévio ao culto, seja inteligente e tenha rendido comentários meus já publicados); Kristeva (com quem me encontrei apenas brevemente durante o período em que ela era uma maoísta fervorosa); e outros.

Não me encontrei com muitos [outros] deles, porque estou bastante afastado desses círculos; por escolha, prefiro círculos muito diferentes e bem mais amplos – aqueles em que posso dar palestras e entrevistas, tomar parte em mobilizações, escrever dezenas de longas cartas todas as semanas etc.

Eu cheguei a mergulhar no que eles escrevem por curiosidade, mas não fui muito longe, pelas razões que já mencionei: o que encontrei era extremamente pretencioso, mas, sob um exame detido, uma boa parte é simplesmente iletrada, com base em leituras extraordinariamente equivocadas de textos que conheço bem (inclusive textos sobre os quais já tinha escrito), argumentos aterrorizantes na sua falta de autocrítica elementar, montes de declarações triviais (apesar de travestidas numa verborreia complicada) ou falsas; e um punhado de pura algaravia. Quando procedo como faço noutras áreas que não compreendo, me deparo com os problemas mencionados acima nos pontos (1) e (2). É a isso, portanto, que me refiro, e é por essas razões que não vou muito longe [no estudo ou na crítica aos cultos pós-modernos]. Posso listar mais uns tantos nomes se a questão ainda não estiver óbvia.

Para aqueles interessados numa descrição literária que reflete praticamente as mesmas impressões (mas de dentro), eu sugeriria David Lodge, que acerta em cheio (até onde posso julgar).

Questionam-me também sobre o quão “particularmente intrigante” é o fato de eu repudiar “tão grosseiramente” esses círculos intelectuais, ao mesmo tempo em que dedico tanto tempo a “expor o posicionamento e a obscuridade do New York Times”: por que não dar aos filósofos de Paris o mesmo tratamento? É uma pergunta justa. Também aqui há uma resposta simples.

O que aparece nos textos com os quais costumo lidar (New York Times, jornais de opinião, grande parte dos trabalhos acadêmicos etc.) está simplesmente escrito numa prosa inteligível e tem um grande impacto sobre o mundo, estabelecendo a moldura doutrinal na qual o pensamento e as opiniões estão em grande medida contidos (tratando-se de sistemas doutrinais bem sucedidos como o nosso).

Isso gera um enorme impacto sobre o que acontece com as pessoas que sofrem em todo o mundo, que são as que me preocupam, diferentemente daquelas pessoas que vivem no mundo descrito por Lodge (de forma precisa, penso eu). Por isso, este trabalho precisa ser tratado com seriedade, ao menos se estivermos [realmente] preocupados com as pessoas comuns e seus problemas.

Até onde sei, as obras dos círculos mencionados não têm nenhuma dessas características; seguramente não têm o mesmo impacto, já que destinam-se apenas a outros intelectuais dos mesmos círculos. Além disso, não há nenhum esforço de que tenho notícia para tornar esses trabalhos inteligíveis à maior parte da população (digamos, às pessoas com as quais estou constantemente me reunindo, escrevendo cartas, dando palestras, e que tenho em mente quando escrevo meus textos; as mesmas pessoas que parecem entender o que eu digo sem qualquer dificuldade em particular, embora de uma maneira geral pareçam ter a mesma deficiência cognitiva que tenho em relação aos cultos pósmodernos). E também não conheço nenhum esforço para mostrar como as teorias pós-modernas se aplicam a qualquer coisa no mundo, no sentido que eu mencionei anteriormente, isto é, estabelecendo conclusões que já não sejam óbvias. Como não me ocorre ficar muito interessado no modo pelo qual os intelectuais inflam suas reputações, obtêm privilégios e prestígio e se libertam da participação efetiva na luta popular, não gasto tempo algum com isso.

Os que me questionam sugerem que eu comece com Foucault – que, como já escrevi repetidas vezes, considero de alguma forma apartado dos demais, por duas razões: [primeiro, porque] ao menos parte do que escreve é inteligível, apesar de geralmente não ser muito interessante; segundo, [porque] ele não era pessoalmente descomprometido com as questões sociais e não se restringia a interagir apenas com os demais integrantes dos mesmos círculos elitistas altamente privilegiados; e o fazem em atendimento exatamente ao que eu havia pedido, dando alguns exemplos para ilustrar por que pensam que a obra de Foucault é importante.

Essa é precisamente a maneira correta de proceder, e penso que ajuda a compreender melhor por que eu adoto uma atitude de “rejeição” para com tudo isso – de fato, não lhes presto nenhuma atenção.

O que eles descrevem – com exatidão, certamente – me parece desimportante, por refletir coisas que já eram conhecidas, à míngua de detalhes sobre história social e intelectual acerca dos quais sugeriria cautela: por acaso trabalhei intensamente em algumas dessas áreas, e sei que a abordagem de Foucault sobre elas não é confiável, pelo que, sem uma pesquisa independente, desconfio de pronto do que ele diz em relação às áreas que não conheço. Penso que há trabalhos muito melhores sobre os séculos XVII e XVIII, e me atenho a eles, bem como às minhas próprias pesquisas.

Mas vamos deixar de lado os aspectos históricos para nos voltarmos às “construções teóricas” e explanações: que houve uma “grande mudança de mecanismos cruéis de repressão para mecanismos mais sutis” para fazer com que as pessoas façam o que os poderosos querem, ninguém pode negar. Isso é verdade; de fato, uma absoluta obviedade. Se isso for uma “teoria”, então todas as críticas endereçadas a mim estão erradas: eu também tenho uma “teoria”, uma vez que venho dizendo exatamente a mesma coisa há anos, com a indicação dos fundamentos e do contexto histórico, mas sem descrever isso como uma teoria (porque não merece tal designação), sem uma retórica obscura (por se tratar de algo trivial), e sem alegar que isso seja a descoberta de algo novo (porque trata-se de uma obviedade). Tem sido plenamente reconhecido há muito que, a partir do declínio do poder de controlar e coagir, torna-se mais e mais necessário recorrer ao que os profissionais da indústria das relações públicas do início do século XX – que compreenderam isso muito bem – chamaram de “controle da opinião pública” [controlling the public mind]. As razões para tanto, como observado por Hume no século XVIII, são as de que “a submissão implícita com que os homens renunciam aos seus sentimentos e paixões em prol daqueles de seus governantes” depende, em última instância, do controle do comportamento e das opiniões. Por que razão essas obviedades de repente tornam-se “uma teoria” ou “filosofia” permanece como algo que outros terão de explicar; Hume simplesmente teria rido disso tudo.

O que é importante nessas trivialidades não é o princípio, que é transparente, mas a demonstração de como ele se aplica nos casos que são importantes para as pessoas, como intervenções e guerras, exploração e terror, embustes do “livre mercado”, e assim por diante. Isso eu não encontro em Foucault, apesar de encontrar em abundância em autores que parecem ser capazes de escrever frases que eu consigo entender e que não são colocados no firmamento intelectual como [“filósofos” ou] “teóricos”.

Que fique claro: os que me questionam estão fazendo exatamente a coisa certa, apresentando o que vêem como “importantes intuições [insights] e construções teóricas” que encontram em Foucault. Meu problema é que as “intuições” [insights] me parecem básicas, e não há “construções teóricas”, exceto se tomarmos como tais as idéias simples e básicas que são revestidas de retórica complicada e pretensiosa.

Perguntam-me também se eu considero isso como errado, inútil ou pedante. A resposta é: não. A parte histórica parece por vezes interessante, apesar de devermos tratá-la com cautela e verificação independente ainda maiores do que o normal. As partes que reafirmam o que foi durante muito tempo óbvio e expresso em termos muito mais simples não são “inúteis”, mas, na realidade, úteis, o que explica por que eu e outros sempre realçamos esses mesmos pontos. Quanto ao pedantismo, na minha opinião, ele está presente, apesar de particularmente eu não culpar Foucault por isso: trata-se de algo tão profundamente enraizado na cultura intelectual corrupta de Paris que Foucault foi naturalmente levado a reproduzi-lo, mesmo que, por méritos próprios, ele tenha se distanciado dessa cultura de uma certa maneira. Sobre a “corrupção” dessa cultura especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, isso é outro assunto, sobre o qual já tratei anteriormente e não voltarei a falar no momento. Há coisas mais importantes a fazer, na minha opinião, do que investigar as peculiaridades dos intelectuais de elite empenhados em buscas por ascensão de carreira e outras ocupações dentro dos seus estreitos e (pelo menos para mim) desinteressantes círculos acadêmicos.

Foram considerações gerais, e reafirmo novamente que é injusto fazer tais comentários sem os demonstrar; mas perguntaram-me e respondi ao único ponto específico que me pareceu ter sido levantado. Quando questionado sobre minha opinião geral, posso apenas dá-la, ou, se algo mais específico é afirmado, reagir a isso. Não irei escrever um ensaio sobre temas que não me interessam.

A menos que alguém possa responder às perguntas simples que surgem imediatamente na mente de qualquer pessoa razoável quando afirmações sobre “teoria” e “filosofia” são levantadas, eu vou continuar a trabalhar com o que me pareça sensato e esclarecedor, e com as pessoas que estão interessadas em compreender e mudar o mundo.

Outro comentarista levantou a questão de que “a linguagem clara não é suficiente quando o contexto de referência não está disponível para o ouvinte”, [o que julgo] correto e importante. Mas a reação certa não é recorrer a um palavreado obscuro e desnecessariamente complexo e pedante sobre “teorias” inexistentes. É, antes, pedir ao ouvinte que indique o contexto de referência que ele ou ela aceite e sugerir alternativas que possam ser consideradas, tudo em linguagem clara.

Nunca encontrei problema algum ao falar com pessoas que não têm alguma ou mesmo nenhuma formação formal, mas é verdade que as coisas tendem a ser mais e mais difíceis na medida em que subimos a escada educacional, quando a doutrinação se torna mais profunda e as escolhas pela obediência que constituem boa parte da educação de elite já cobraram seu pedágio.

O mesmo comentarista sugere que, fora de certos círculos como o deste fórum, “para o resto do país Chomsky é incompreensível”. Isso é absolutamente contrário ao que percebo na minha ampla experiência de falas a todos os tipos de públicos. Pelo contrário, minha experiência é a que descrevi: a incompreensão corresponde aproximadamente ao nível de escolaridade.

Tomemos, por exemplo, falas em programas de rádio. Estive presente numa quantidade razoável de programas, e é normalmente bastante fácil adivinhar, por causa dos sotaques etc., que tipo de público cada um deles tem. Verifiquei repetidas vezes que, quando o público é majoritariamente pobre e menos escolarizado, posso deixar de lado várias questões relativas ao pano de fundo e ao “contexto de referência” da discussão por serem coisas já óbvias e tidas como tais por todos, e posso, assim, avançar para os temas que interessam a todos. Com os públicos mais escolarizados, isso é muito mais difícil; é necessário desmontar montes de construções ideológicas.

É certamente verdade que muitas pessoas não conseguem ler os livros que escrevo. Mas isso não é porque as ideias ou a linguagem sejam complicadas – não temos quaisquer problemas nos debates informais sobre exatamente os mesmos pontos, e mesmo com as mesmas palavras. As razões são diferentes; talvez, em parte, culpa do meu estilo de escrita, que em certa medida é resultado da necessidade (que eu sinto, pelo menos) de apresentar uma documentação consideravelmente abundante, o que torna a leitura difícil.

Por estas razões, algumas pessoas pegaram praticamente o mesmo material, muitas vezes com as mesmas palavras, e o colocaram em forma de panfleto e similares. Ninguém parece ter grandes problemas com isso – embora, uma vez mais, os críticos do Times Literary Supplement ou de periódicos acadêmicos profissionais muito comumente não tenham a menor ideia do se trata; às vezes isso é muito cômico.

Um último ponto, algo sobre o qual já escrevi anteriormente (e.g., numa discussão nos Z Papers e no último capítulo do Year 501[5]): tem havido uma notável mudança de comportamento da classe intelectual nos últimos anos. Os intelectuais de esquerda, que há sessenta anos estariam a ensinar em escolas da classe trabalhadora, a escrever livros como “matemática para milhões” (que tornou a matemática inteligível para milhões de pessoas), a participar e falar em organizações populares etc., estão hoje amplamente afastados de tais atividades, e, embora rápidos para nos contar que são muito mais radicais, não se encontram disponíveis, ao que parece, quando há uma necessidade óbvia e crescente e mesmo requisições explícitas pelo trabalho que eles poderiam desenvolver lá fora, no mundo das pessoas com problemas e preocupações reais.

Este não é um problema pequeno. Este país, agora mesmo, está em um estado muito estranho e ameaçador. As pessoas estão assustadas, irritadas, desiludidas, pessimistas e confusas. Isso é o sonho de todo ativista, como ouvi de Mike certa vez, mas é também solo fértil para demagogos e fanáticos, que podem reunir (e na verdade já o fazem) um substancial apoio popular com mensagens que não são estranhas aos seus predecessores em circunstâncias um tanto quanto similares. Nós sabemos em que direção isso nos levou no passado, e isso pode ocorrer novamente. Há uma enorme lacuna que outrora foi pelo menos parcialmente preenchida pelos intelectuais de esquerda que desejavam se envolver com as pessoas em geral e seus problemas. Na minha opinião, isto tem implicações nefastas.

Notas

Por causa do texto ter sido ligeiramente adaptado, alguns mínimos detalhes foram omitidos. Para visualizar o texto com todos os seus detalhes (notas, nomes, etc.), clique aqui.

1. Considerando que o texto foi publicado em fins de 1995, estima-se que Chomsky se refira ao início da década de 1960. N.T.

2. Trata-se do seguinte texto: GRAUBARD, Alan. Liberty and/or Justice for All? Review essay on John Rawls, “A Theory of Justice” and Robert Nozick, “Anarchy, State and Utopia”. Working Papers for a New Society, Vol. III, No. 2, Summer 1975. N.T.

3. Certamente uma menção à famosa passagem de David Hume (1711-1776) no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano” (“An Enquiry Concerning Human Understanding”), publicado em 1748: “If we take in our hand any volume; of divinity or school metaphysics, for instance; let us ask, Does it contain any abstract reasoning concerning quantity or number? No. Does it contain any experimental reasoning concerning matter of fact and existence? No. Commit it then to the flames: for it can contain nothing but sophistry and illusion.” (“Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: Contém algum raciocínio abstrato acerca de quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Então lançai-o às chamas, pois não contém nada além de sofismas e ilusões”). N.T.

4. David Lodge (1935) é um escritor crítico literário britânico muito conhecido por seus romances que satirizam a vida acadêmica: Changing Places: A Tale of Two Campuses (1975), Small World: An Academic Romance (1984), e Nice Work (1988). O professor Chomsky seguramente se refere a tais obras nesse comentário (particularmente à segunda, “Small World”). N.T.

5. Trata-se da seguinte obra: CHOMSKY, Noam. Year 501: The Conquest Continues. Boston: South End Press, 1993. A passagem do capítulo 11 da obra “Year 501” transcrita a seguir ilustra bem o argumento de Chomsky acerca da mudança de papel dos intelectuais de esquerda: “Left intellectuals took an active part in the lively working class culture. Some sought to compensate for the class character of the cultural institutions through programs of workers’ education, or by writing bestselling books on mathematics, science, and other topics for the general public. Remarkably, their left counterparts today often seek to deprive working people of these tools of emancipation, informing us that the “project of the Enlightenment” is dead, that we must abandon the “illusions” of science and rationality – a message that will gladden the hearts of the powerful, delighted to monopolize these instruments for their own use. […]When activism declines, the commissar class, which never falters in its task, regains command. While left intellectuals discourse polysyllabically to one another, truths that were once understood are buried, history is reshaped into an instrument of power, and the ground is laid for the enterprises to come.” (“Os intelectuais de esquerda tiveram um papel ativo na pulsante cultura da classe trabalhadora. Alguns lograram compensar o caráter de classe das instituições culturais através de programas de educação proletária, ou por meio da elaboração de livros populares sobre matemática, ciências, e outros tópicos, para o público em geral. Notavelmente, os correspondentes intelectuais de esquerda de hoje procuram privar os trabalhadores dessas ferramentas de emancipação, dizendo-nos que o “projeto do Iluminismo” está morto, que devemos abandonar as “ilusões” da ciência e da racionalidade – uma mensagem que vai alegrar os corações dos poderosos, maravilhados pela possibilidade de monopolizar esses instrumentos para uso próprio. […] Quando o ativismo entra em declínio, a classe ávida por poder [commissar class], que nunca vacila em sua tarefa, retoma o comando. Enquanto os intelectuais de esquerda debatem truncadamente uns com os outros, verdades que eram antes compreendidas são enterradas, a história é remodelada como instrumento de poder, e os alicerces são lançados para a vinda das corporações”). N.T.

Universo Racionalista

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Fundada em 30 de março de 2012, Universo Racionalista é uma organização em língua portuguesa especializada em divulgação científica e filosófica.