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Evoluímos para ver as coisas como realmente são?

Publicado por Michael Shermer na Scientific American
Traduzido por Rodrigo Aben-Athar

Nós percebemos a realidade tal como ela é?

Um dos mais profundos problemas filosóficos é como sabemos a natureza da realidade. Por milênios, filósofos ofereceram muitas teorias, do solipsismo (apenas sua própria mente tem a existência certa) à teoria de que a seleção natural moldou nossos sentidos para nos dar um modelo preciso ou verídico do mundo. Agora uma nova teoria do cientista cognitivo Donald Hoffman, da Univerdade da California, Irvine, está chamando atenção. (Busque no Google seus artigos acadêmicos e sua palestra no TED com mais de 1.4 milhão de visualizações.) Fundamentada em psicologia evolucionária, é chamada de Teoria da Interface de Percepção (ITP, na sigla em inglês) e argumenta que a percepção age como uma interface de usuário específica por espécie e direciona o comportamento visando sobrevivência e reprodução, não a verdade.

A analogia a computadores de Hoffman é que o espaço físico é como o desktop de um computador e objetos estão nele como ícones no desktop, que são produzidos pela interface gráfica de usuário (GUI). Nossos sentidos, diz ele, formam uma interface de usuário biológica – uma interface mais refinada – entre nossos cérebros e o mundo exterior, transformando estímulos físicos, como os fótons da luz, em impulsos neurais processados pelo córtex visual como coisas no ambiente. Interfaces de usuário são úteis, porque você não precisa saber o que há dentro de computadores ou cérebros. Você precisa apenas saber como interagir com a interface bem o bastante para realizar sua tarefa. Função adaptativa, não percepção verídica, é o que realmente importa.

O espécime para ilustração (holótipo) de Hoffman é o besouro-manhoso australiano, Julodimorpha bakewelli. As fêmeas são grandes, brilhantes, marrons e com ondulações. Só que garrafas descartadas de cerveja, apelidadas de “atarracadas”, também são assim e os machos da espécie as montam até que eles morram pelo calor, fome ou por ataques de formigas. A espécie estava à beira da extinção, porque seus sentidos e cérebro foram projetados pela seleção natural, não para perceber a realidade (é uma garrafa de cerveja, seu idiota!), mas para copular com qualquer coisa grande, brilhante, marrom e com ondulações.

Para testar sua teoria, Hoffman gerou milhares de simulações de computador evolucionárias em que organismos digitais cujos sistemas de percepção eram sintonizados exclusivamente para a verdade foram derrotados por aqueles afinados somente para adequação. Como a seleção natural depende apenas da adequação esperada, a evolução moldou nossos sistemas sensoriais em direção a um comportamento adequado, não para uma representação verídica.

Essa teoria de fato vale consideração e testes, mas tenho minhas dúvidas. Primeiro, como uma percepção mais precisa da realidade não seria adaptativa? A resposta de Hoffman é que a evolução nos deu uma interface para esconder a realidade subjacente, porque, por exemplo, você não precisa saber como neurônios criam a imagem de uma cobra, você só precisa se manter fora do caminho do ícone de uma cobra. No entanto, como o ícone chegou ao ponto de se parecer com uma cobra, em primeiro lugar? Seleção natural. E por que algumas cobras não-peçonhentas evoluíram para se mimetizar com espécies peçonhentas? Porque os predadores evitam cobras que realmente são peçonhentas. Mimetização só funciona se há uma realidade objetiva para mimetizar.

Hoffman tem afirmado que “uma rocha é um ícone de interface, não um constituinte da realidade objetiva.” No entanto, uma rocha real, moldada como a ponta de uma flecha e atirada contra uma refeição de quatro patas, funciona mesmo que você não conheça física ou cálculo. Não seria isso uma percepção verídica com importância adaptativa?

Quanto ao besouro-manhoso, as garrafas atarracadas são o que etólogos (especialistas em comportamento animal) chamam de estímulos supernormais, ou seja, estímulos que mimetizam objetos que organismos evoluíram para responder e extraem respostas ainda mais fortes, como (para algumas pessoas) implantes de silicones nos seios de mulheres ou corpos malhados à base de testosterona em homens. Estímulos supernormais funcionam apenas porque a evolução nos projetou para responder a estímulos normais, que podem ser precisamente transmitidos de nossos sentidos para nosso cérebro para funcionar.

Hoffman diz que nossa percepção é baseada na espécie e que devemos encarar predadores seriamente, mas não literalmente. Sim, o ícone que um golfinho usaria para “tubarão”, sem dúvida é diferente do que nós, humanos, usaríamos, mas a verdade é que tubarões existem e realmente tem poderosas caudas de um lado e uma boca cheia de dentes do outro; e isso é verdade, pouco importando como nosso sistema sensorial funciona.

Além disso, simulações digitais são úteis para reproduzir o modo como a evolução teria acontecido, mas um teste prático para a Teoria de Interface seria determinar se a maioria das interfaces sensoriais biológicas criam ícones que se parecem com a realidade ou ícones que a distorcem. Eu aposto na realidade. Dados irão dizer.

Finalmente, por que abordar esse problema com uma escolha ou-um-ou-outro entre adequação e verdade? Adaptações dependem em grande parte de um modelo relativamente preciso da realidade. O fato de que a ciência progride rumo a, digamos, a cura de doenças e ao pouso de uma nave em Marte, deve significar que nossas percepções da realidade estão cada vez mais próximas da verdade, ainda que seja com o “v” minúsculo.

Rodrigo Aben-Athar

Rodrigo Aben-Athar

Designer e curtametragista, fascinado por ciência e filosofia. Leitor voraz e tradutor nas horas vagas.