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“Escola sem Partido”: mas, afinal, o que querem os inimigos da razão?

Tramita no Senado a inclusão nas diretrizes e bases da educação do “Programa Escola Sem Partido”. A proposta foi apresentada pelo Senador Magno Malta, da bancada evangélica.

O Universo Racionalista já manifestou uma opinião oficial contrária ao projeto, assim como os setores mais intelectualizados da sociedade civil. Combinado com isso, o Ministério Público Federal (MPF) em nota técnica apontou a inconstitucionalidade do projeto. Apesar disso, o objetivo desse texto é contribuir com outros elementos para o debate.

É preciso responder o que propõe esse projeto e porquê sua aprovação seria um retrocesso para produção de conhecimento. Apesar desse nome “simpático” para parte da população, essencialmente pelo fato de existir um rechaço às organizações políticas, gerada pelos inúmeros escândalos de corrupção, existem elementos de fundo que precisam ser debatidos. O nome do projeto, em si, pouca relação tem com seu conteúdo, pois não se debate suprir a liberdade de organização partidária (o que seria mais escandaloso). Nesse sentido, a partir de pontos do projeto (reproduzidos em negrito) será debatido o seu real significado e seu impacto para educação.

Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:

I – Neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; ”

Inicialmente é preciso discutir neutralidade. Muitos afirmam que é preciso mostrar “todos os lados”. Em primeiro lugar, existiram fatos históricos e consequentemente políticos que não são passíveis de neutralidade, pelo contrário, devem ser combatidos com muito rigor intelectual.

Por exemplo, o que propõe o Movimento “Escola Sem Partido” quando se ensinar sobre o Nazismo ou sobre a escravidão no Brasil? Neutralidade ou profunda reflexão acerca dos bárbaros crimes que foram cometidos contra a humanidade nesse período? Como explicar a colonização do Brasil sem debater o genocídio cometido contra os povos indígenas?  Os defensores da escola sem partido propõem contemporização dos fatos? Propõem que o professor em sala de aula diga: “bem alunos, é preciso entender as boas intenções dos nazistas”.

E quando se ensina sobre Ditadura Militar na América Latina, o que dizer? “Alunos… a tortura, assassinatos e estupros de homens, mulheres e crianças foram importantes para garantir a democracia”. Ou se deve fazer uma profunda discussão para evitar que nossa sociedade mergulhe novamente na barbárie, onde as pessoas eram mortas por pensar diferente? É ou não é importante dizer que 471 cientistas foram perseguidos na ditadura colocando o Brasil ainda mais na dependência científica dos países desenvolvidos? (1)

Ou em uma aula sobre meio ambiente que se discuta o aquecimento global ou desmatamento da Mata Atlântica, o que dizer? “Olha gente, também tem o pessoal que diz que o aquecimento global não existe… Se não tiver desmatamento como vamos ter mais fazendas que produzem soja, se coloquem do lado do dono… Eles desmatam por uma boa causa”.

O papel da educação não deve ser um mediador de ideias antagônicas, pelo contrário. Cabe a educação ser o elemento reflexivo frente a acontecimentos concretos, para que possibilite gerações que não viveram determinados acontecimentos históricos a ter uma opinião crítica sobre ações que a humanidade já cometeu no passado e que ela seja o elemento consciente para impedir retrocessos.

“VII – Direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções

Iniciando pelo aspecto moral, é comum que as pessoas tenham distintas visões morais. A questão é que temos que refletir se existe uma moral que possa nortear o ambiente escolar ou cada um segue sua moral.

Os profissionais da educação, em especial, os que atuam com crianças em vulnerabilidade social sabem que os jovens acabam reproduzindo práticas lamentáveis que apenas refletem a “moral do vale tudo” muitas vezes aprendidas em casa como: bullying, machismo, racismo, homofobia, agressões verbais e físicas, o que acaba por tencionar o ambiente escolar. Cabe a escola fazer um contraponto a essa postura, sabendo que muitas vezes os pais aplaudem as posturas dos filhos. É comum os pais compactuarem com as práticas citadas acima com o “singelo” argumento de que “é apenas uma brincadeira”, “esse mundo politicamente correto é muito chato”, entre outros.

Isso ocorre por que várias gerações aprenderam que para se divertir é preciso ferir, humilhar e agredir o outro. Na concepção desses alunos e dos pais, que muitas vezes incentivam, essas ações são perfeitamente de acordo com suas morais. Cabe a educação capitular a essa moral ou lutar por uma moral que prime pelo respeito às diferenças?

Sobre o direito de os pais exigirem uma educação de acordo com suas convicções religiosas, é preciso escrever em letras garrafais que O ESTADO É LAICO. Isso não significa que ele deva combater a religião, que no Brasil algumas são até muito bem tratadas, com isenção de impostos, concessão de televisão, etc. Estado Laico significa que o conjunto de suas instituições não deve ser influenciada por questões religiosas e isso inclui a educação pública.

Na prática a “Escola Sem Partido” é uma manobra para aprovar o PL do Marcos Feliciano para tornar obrigatório o ensino do criacionismo na escola, porém com uma roupagem mais palatável. O que “Escola sem partido” propõe que seja ensinado? Que homem veio do barro, a mulher da costela do Adão, que Deus fez o mundo em 6 dias?

Além disso, a ciência não é um mero mecanismo para conhecer as coisas, mas ela é uma ferramenta determinante para melhorar a vida da humanidade, como o aumento da nossa expectativa de vida, que está diretamente relacionada aos avanços científicos.

Cada vez que um paciente opta por um método científico de cura é uma derrota para um charlatão religioso que quer arrancar cada tostão de uma pessoa que se encontra em fragilidade física e emocional. O conhecimento científico é um antídoto contra o crescimento do obscurantismo religioso. Por isso, a sede de alguns setores religiosos em desmoralizar e combater a ciência e o pensamento crítico nas escolas, inclusive fisicamente (vide Idade Média).

Lutar contra “Escola Sem Partido” significa também defender o ensino científico nas escolas, na perspectiva de que as futuras gerações sejam mais alfabetizadas cientificamente do que as que sucederam e que elas possam conduzir a humanidade a caminhar nas trilhas da racionalidade.

“Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero. ”

Em primeiro lugar, ninguém opta sobre sua orientação sexual.  A orientação sexual não esta relacionada com educação A ou B, tampouco como afirmou Bolsonaro: “Ter filho gay é falta de porrada! ”. Hoje em dia se acumulam evidências de que o comportamento sexual tem profunda influência genética. (2)

Segundo, só no “mundo fantástico dos delírios, em que o PT está dando um golpe comunista” que as escolas: imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade.”. Pelo contrário, as escolas seguem sendo um ambiente profundamente homofóbico, onde gays e lésbicas sofrem muito preconceito e inclusive agressões físicas de seus colegas.

Frente a uma situação de homofobia qual deve ser o papel da escola? Se abster ou debater que é necessário respeitar as diferenças? Obviamente o ambiente escolar deve ser um espaço de respeito às diferenças e não ter uma postura de intolerância e preconceito. Magno Malta (autor do projeto), inclusive, ameaçou renunciar mandato se Lei Anti-homofobia fosse aprovada no Congresso(3). Assim, parece que para os partidários da “Escola sem partido” e o senador, a escola e o estado não devem “se meter” no tema sobre o respeito a diversidade sexual e que as pessoas devem resolver essa questão de forma medieval, com violência e assassinatos contra a comunidade LGBT.

Também é preciso, sim, ter uma política de educação sexual com os jovens, instruindo sobre DSTs, métodos contraceptivos, etc. As últimas gerações têm uma forte influência ao estímulo sexual por parte da mídia e, ao mesmo tempo, pouca educação sobre o tema o que leva, muitas vezes, a gravidez precoce e DST´s.

Por fim, os defensores do projeto “Escola Sem Partido” fazem uma completa caricatura do momento atual da educação. As escolas cumprem um papel insuficiente na perspectiva do avanço da criticidade científica e social. Milhares de estudantes terminam o segundo grau sem saber conceitos básicos de evolução; quiçá uma formação filosófica com base no ceticismo científico.

Isso se deve a tentativa permanente de sucateamento da educação, com escolas sem uma estrutura mínima para se ter um laboratório de ciência, professores com baixos salários e com pouco ou nenhum estímulo a ter formação continuada.

Por isso, o lamentável desse projeto é que ele não quer acabar com uma escola crítica e reflexiva, afinal, hoje infelizmente ela não cumpre esse papel, mas sim desmoralizar ainda mais um punhado de educadores que vão na contramão, estimulando uma educação crítica.

Lutar contra a “Escola Sem Partido” significa, não só defender uma educação crítica (ou fazer com que ela se torne), mas sim derrotar os setores mais reacionários que querem impor uma derrota científico/intelectual a fim de abrir caminho para o charlatanismo religioso.

Referências:

  1. https://goo.gl/JtPuMg
  2. https://goo.gl/gVjpnF
  3. https://goo.gl/4nJby8
Lucas Sena

Lucas Sena

Mestre e doutorando em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).