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De volta ao Éden

Uma voz retumbante ecoa nos céus. Deus vem anunciar um presente, o expurgo completo dos pecados da humanidade. A partir de agora, todos os seres humanos estão livres, e viverão para sempre nos belos jardins do Éden. Deus, entretanto, ainda se sentia cansado após a árdua semana de trabalho, e então decidiu reaproveitar o design original do Éden, mantendo a metragem, o trabalho de paisagismo, a iluminação e o clima agradável da mesopotâmia(1). Logo de início, porém, o grande Chefe se deparou com um problema: como colocar as quase 7,5 bilhões(2) de pessoas em seu jardim? Afinal, as dependências do paraíso foram planejadas para comportar, confortavelmente, um casal, quem sabe uma ou duas crianças e uns bichinhos de estimação.

Para não fazer feio, o magnânimo Patrão resolveu cortar custos, começando pelos recursos humanos. Ia enviar para o limbo as pessoas de olhos altivos, assassinos de inocentes, os perversos, maldosos, que prestam falso testemunho, mentirosos, os que provocam discórdia, prostitutas, adúlteros, homossexuais e todos aqueles que questionam sua bondosa vontade(3). Sob tais critérios, entretanto, não sobraria ninguém, e Deus sentiu que estava criando um Éden muito exclusivo, e não queria ser chamado de elitista à toa. Dessa forma, o Chefe resolveu dar umas duas semanas de anuência comportamental, um tipo de arbítrio livre do livre arbítrio. Acertou em cheio, conseguiu filtrar os escatológicos 144 mil que ele tanto queria(4). Para finalizar, botou os salvos num cruzeiro all inclusive na arca de Noé(5) enquanto mandava todo o resto para onde Judas, aquele traidor, perdeu as botas.

A chegada ao Éden foi tranquila, houve certo atraso no translado da arca até os portões do jardim, mas as belas paisagens de areia e o sol quente certamente compensaram pelo desânimo dos meses dentro de uma embarcação de madeira com quase 5 mil anos de idade(6). Na porta, uma equipe de querubins, com seus crachás, ternos pretos, óculos escuros e fones de ouvido, aguardava para verificar as credenciais divinas e controlar a entrada dos novos moradores. Logo no saguão, uma empresa de eventos terminava de organizar um grande coffee break, disposto em uma mesa com 288 mil lugares, para que todos pudessem sentar-se de um só lado e ninguém ficasse de costas na hora da foto(7). Apesar da alegria geral, o staff era constantemente questionado sobre onde estava a tal mesa dos gluten-free, probióticos e sucos detox.

Sem saber sobre a tal mesa, a promotora de eventos foi falar diretamente com o magnífico Rei dos Reis. Contou a Deus sobre o glúten, uma proteína que, segundo as senhoras de 30 e poucos anos do grupo, engorda e faz um mal terrível para a saúde. Também falou dos probióticos, alimentos que continham milhares de pequenos seres, chamados microrganismos, e segundos às mesmas senhoras, emagrecem e fazem um bem enorme para a saúde. Por fim, a promotora contou dos sucos detox, uma mistura de frutas e vegetais crus, que segundo as exigentes recém-chegadas do Éden, fazia o fígado eliminar todas as toxinas do corpo. Confuso, Deus mandou dizer que nunca soube dessa tal de proteína, quanto mais do glúten. Também falou que não conhecia esses microrganismos(8), isso era departamento de Adão, que escolheu o nome de todo mundo no Éden e, portanto, era melhor taxonomista do que ele(9). Mas saiu triunfante no final, pois disse que apesar de não saber de fígado ou detox, o que não faltava em seu banquete eram sucos das mais diversas frutas, menos o de maçã, que era proibido por lá desde a inauguração(10).

O restante do coffee break transcorreu bem, todos comeram, conversaram e estavam animados para conhecer o famoso jardim edênico. Antes de dispersarem, entretanto, o Manda Chuva convidou a todos para um pequeno briefing com os detalhes básicos das instalações e das normas de boa convivência. Como no princípio da criação, todos deviam andar nus(11), qualquer vestuário ou acessório deveria ser deixado com o pessoal do coffee break. Podiam subjugar os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pela terra, comer as plantas que brotassem no jardim e os frutos de todas as árvores(12), exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal(10), senão morreriam ou seriam expulsos do Éden. Deus não se lembrava bem de ter cumprido a questão da morte na última vez(13), então incluiu a expulsão só por garantia.

A primeira semana correu bem, o jardim era lindo, cheio de cachoeiras, paisagens e animais. Frutas perfeitas, dependuradas e ao alcance das mãos, a água dos rios era límpida e potável. Além disso, a política contra o pudor permitia todo o tipo de ato libidinoso e incestuoso entre homens, mulheres e crianças, excetuando os casos de homossexualidade e zoofilia, que eram repreensíveis. Ao fim do primeiro mês, entretanto, alguns problemas sanitários surgiram. Sendo o jardim do Éden uma criação perfeita, não admitia instalações sanitárias de qualquer tipo, além disso, a progressiva perda do senso de vergonha fez com que a população começasse a despejar suas excretas onde bem entendesse, o que promoveu a disseminação de cólera, parasitoses, doenças fúngicas e virais entre os escolhidos.

Com o surgimento de doenças, alguns grupos resolveram delimitar suas propriedades e promover o controle do despejo sanitário. Isso fez com que as melhores árvores frutíferas e animais fossem encontrados em propriedades fechadas, induzindo o paulatino crescimento do escambo entre grupos e aqueles que se mantinham errantes. Apesar das dificuldades, o primeiro ano findou-se sem mais problemas. As coisas, porém, começaram a complicar quando, no segundo ano, três ou quatro grandes grupos se expandiram ao ponto de instaurar um sistema latifundiário patriarcal em quase todo Éden. Para proteger-se dos furtos e manter seu território intacto, estabeleceram vigília constante nas fronteiras. Guardas armados com pedaços de madeira e arco-e-flechas impediam a entrada de qualquer errante ou bandido em suas terras.

Sem opção, muitos sem-terra buscaram abrigo sob a árvore do conhecimento do bem e do mal, que ficava no meio do jardim. Lá, encontraram a serpente, que morta de medo se escondia dos caçadores. Particularmente, o réptil gostava mais dos antigos inquilinos, que eram mais chegados ao vegetarianismo. Não demorou para a fome dos sem-terra transformar a serpente e as maçãs em uma deliciosa refeição. E aqueles que comeram do fruto, tal como os que não comeram, resolveram vestir-se(14), pois se cansaram do frio noturno e das picadas de insetos.

Deus, procurando não ser pego de surpresa como da última vez(15), instalou um sistema de vigilância na árvore do conhecimento, que quando acionado soou um alto alarme no firmamento. Sabendo da transgressão, foi inquirir os infratores com toda a fúria de um Pai piedoso, uma divindade onisciente como Ele(16) não podia ser surpreendida tantas vezes assim. Quando levantou sua voz aos sem-terra, entretanto, ouviu deles como o duro sistema de demarcação territorial os havia deixado sem opções, e foi forçado a ponderar acerca da punição cabível. Após densa consideração, o poderoso Chefão decidiu que, sendo ele o criador da serpente, da árvore, da maçã, do “arbítrio”, da fome, do sexo, do pudor e sua ausência, do homem, e do mal em si, a punição cabível aos transgressores seria a expulsão dos jardins do Éden, destinados a viver em seu exterior até o fechar dos olhos, o último suspiro, a morte da carne.

Dos expulsos, alguns mudaram-se para as praias da Grécia, o Sul da França, Austrália, Reino Unido, Irlanda, Canadá e outros países, onde agora havia bastante espaço e a especulação imobiliária estava em baixa. Além disso, depois de alguns anos no Éden, ouvem-se relatos da evasão de um grande número de pessoas. Segundo boatos, a rotina tornou-se enfadonha, o sinal de celular era fraco, e a estrutura não era tão boa assim, afinal.

Referências

  1. Gênesis 1, 8-14.
  2. Worldometers. Current World Population. Disponível em: http://www.worldometers.info/world-population/ Acesso em: 08/08/2016.
  3. Provérbios 6, 16-35.
  4. Apocalipse 14, 1-5.
  5. Gênesis 6, 14-16.
  6. ABC News. Evidence Noah’s Biblical Flood Happened, Says Robert Ballard. Disponível em: http://abcnews.go.com/Technology/evidence-suggests-biblical-great-flood-noahs-time-happened/story?id=17884533 Acesso em: 08/08/2016.
  7. Khan Academy. The Last Supper. Disponível em: https://www.khanacademy.org/humanities/renaissance-reformation/high-ren-florence-rome/leonardo-da-vinci/a/leonardo-last-supper Acesso em: 08/08/2016.
  8. Gênesis 1, 20-25.
  9. Gênesis 2, 19.
  10. Gênesis 2, 16-17.
  11. Gênesis 2, 25.
  12. Gênesis 1, 26-30.
  13. Gênesis 3, 3.
  14. Gênesis 3, 6-7.
  15. Gênesis 3, 8-9.
  16. Salmos 139, 1-9.
Hércules Rezende

Hércules Rezende

Licenciado em Ciências Biológicas --- Bacharel em Nutrição --- Especialista em Fitoterapia --- Mestre e Doutorando em Ciências Biológicas (Biofísica), Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com bolsa de pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2015-2016) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 2016-) --- Membro da Biochemical Society (LONDON/UK) desde 2014 --- Fundador e ex-Diretor Científico da Liga Acadêmica de Nutrição Esportiva, Escola de Nutrição, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (LANES-UNIRIO) --- Conselheiro da Liga Acadêmica de Nutrição Clínica, Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (LANC-UNIRIO) --- Autor dos livros Princípios de Bioética (Editora Universo) e Caminho Retrógrado (Editora Saraiva) --- Revisor convidado dos periódicos Current Nutrition & Food Science (Bentham Science Publishers), IMPULSE - Undergraduate Neuroscience Journal (Appalachian State University) e International Research Journal of Medicine and Medical Sciences (NetJournals) --- Editor associado do periódico Food and Nutrition (Lawarence Press) --- Tem experiência docente em Neurofisiologia, Metodologia de Pesquisa Científica, Fisiopatologia Clínica e Nutrição Esportiva --- Interessado em mecanismos farmacológicos de suplementos alimentares, comunicação neuroglial, ação central de antioxidantes, sistema canabinóide, metabolismo de lipídios n-3 e n-6 e comportamento alimentar. (ORCID: 0000-0003-1584-9157 / ResearcherID: M-7198-2015).