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Cosmos e a romantização da ciência

Riis Rhavia Assis Bachega

Esse texto visa promover uma reflexão crítica à cerca da apresentação da ciência e do cientista na prestigiada série de divulgação científica Cosmos apresentada originalmente por Carl Sagan e relançada recentemente com a apresentação do astrofísico americano Neil deGrasse Tyson.

A série Cosmos tem como grande mérito tratar temas científicos complexos em uma linguagem acessível ao público especializado e em inspirar muitos jovens a seguir carreira científica (inclusive aqueles que vos escreve). A forma apaixonada como Sagan (e Tyson) falam das grandes descobertas científicas, do quanto ainda temos que descobrir e o quanto somos pequenos em relação ao universo, seja em escala espacial ou temporal, tem profundas consequências na forma como nos vemos e encaramos a vida.

No entanto, a série peca em algo que a meu ver, pode futuramente desfazer todo o deslumbre inicial que ela causa em seus telespectadores. Estou falando do excesso de romantização da atividade científica. O que quero dizer com isso? A essa romantização, me refiro à visão idealizada da atividade científica e dos cientistas, tidos como homens que analisam criticamente suas hipóteses, isentos de preconceitos e sem nenhum tipo de compromisso apaixonado a não ser com a verdade. Esses cientistas, ao confrontados com evidências que contradigam suas hipóteses, abdicariam humildemente delas.

Essa concepção está explícita logo no início do primeiro episódio da nova série Cosmos em que Tyson diz:

“Para fazer essa jornada precisamos de imaginação, mas só com imaginação não é o bastante por que a realidade da natureza é muito mais surpreendente do que qualquer coisa imaginável. Esta aventura só é possível por que gerações de pesquisadores seguem severamente um conjunto de regras simples: teste ideias através de experimentos e observações, desenvolva as ideias que passarem no teste e rejeite as que falham, siga as evidências aonde elas levarem e questione tudo.”

Isso tudo é muito bonito, mas sinto dizer caro leitor, que a ciência só funciona assim na prática no melhor dos mundos possíveis de Leibniz. No mundo real, os cientistas estão longe desse ideal romântico apresentado em Cosmos e quem trabalha com pesquisa científica acho que concordará comigo. Se analisarmos a história da ciência, pouquíssimas vezes mudanças nas concepções se deram por que os cientistas analisaram criticamente as suas concepções prévias e abdicaram delas por que não se adequavam as evidências.

A começar que cientistas são seres humanos, e seres humanos tem uma coisa chamada ego, e os cientistas em geral, com seus títulos acadêmicos e status, costumam ter um ego do tamanho do mundo. E para pessoas assim, é muito difícil abdicar de concepções que ela teve a vida toda, por que novas evidências as contradizem. A tendência é sempre tentar enquadrar o problema ao paradigma [1] dominante.

Um caso célebre disso foi o de Max Planck, físico alemão que tentava solucionar o problema da radiação emitida por um corpo negro, no final do século XIX. Ele conseguiu resolver o problema considerando que a energia emitida se distribuía em quantidades discretas e não continuamente como se acreditava classicamente, o que dá origem a hipótese dos quantas e se desenvolveria posteriormente naquilo que chamamos hoje de mecânica quântica. No entanto, Planck morreu acreditando que um dia o problema da radiação do corpo negro seria resolvido classicamente, e que a hipótese da discretização tinha sido a única que lhe ocorreu na hora.

A verdade, como argumenta muito bem Thomas Khun em seu Estruturas das Revoluções Científicas é que raríssimas vezes na história da ciência, antigas visões foram abandonadas por que os cientistas da época humildemente revisaram suas concepções frente a novas evidências. Na prática, mudanças de paradigma ocorrem por que cientistas com antigas concepções se aposentam e morrem, sendo substituídos por novos cientistas com novas visões.

Atrelado a isso, a série apresenta a história dos cientistas de maneira heroica. No primeiro episódio, vemos Giordano Bruno praticamente como um profeta que recebeu uma revelação divina.

Crédito da Imagem: FOX e National Geographic.
Crédito da Imagem: FOX e National Geographic.

Na série, Bruno é apresentado como um mártir, que ao anunciar seu “evangelho” foi reprimido pelas forças “obscurantistas” da época. Faltou falar, que sua condenação se deu mais por concepções teológicas do que por ideias científicas. No caso de Galileu, ele havia feito muitos inimigos entre os acadêmicos da época, em grande parte devido a sua dificuldade de tratar com pessoas. Aliás, maior parte da oposição ao heliocentrismo se deu mais pelas autoridades acadêmicas do que eclesiásticas. Essa história está muito bem explicada no livro Os Sonâmbulos de Arthur Koestler.

Outra coisa apresentada na série é que o cientista não se submete a autoridade, e que deve apenas se ater aquilo que a natureza mostra. Na prática, a autoridade é muito forte na ciência. A academia é uma briga de egos, e para os estudantes conseguirem construir sua carreira, é praticamente impossível não se submeter à autoridade dos professores.

E mais, eu digo que a autoridade deve ser algo a ser respeitada, em especial para os estudantes que estão começando. Para se questionar se deve primeiro entender bem aquilo que é tido como verdade, e para isso, respeitar a autoridade de quem tem mais experiência e se aprofundou mais naquilo que você é fundamental. A ciência é feita por questionamentos, mas questionamentos embasados, e querer questionar por questionar, torna o questionamento vazio.

Outra coisa também que a série falha, ao mostrar os cientistas de forma heroica é que se ignora que um desenvolvimento científico está atrelado ao contexto da época, e tem por trás aspectos socioeconômicos e culturais. Então, passar a visão de que a ciência é um empreendimento de apaixonados em busca de entender o mundo, é muita ingenuidade a meu ver. Uma série que mostra muito bem a relação entre o desenvolvimento da ciência e o contexto socioeconômico da época é uma produzida pela BBC, intitulada “História da Ciência: Poder Prova e Paixão”.

Por fim, gostaria de deixar claro ao leitor que a série Cosmos é excelente, muito bem produzida e que há muito a se aprender com ela. Espero que a nova série inspire mais jovem a seguir carreira científica, tal como a série original. Mas fica aqui o alerta: na prática, a ciência está muito distante daquela mostrada belamente por Sagan, Tyson e outros divulgadores. Eu falo isso, por que ao longo de minha trajetória acadêmica, vi muitos estudantes com essa visão romântica desistirem ao serem confrontadas com a dura realidade do mundo acadêmico.

Indicações Bibliográficas

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.

KÓSTLER, Arthur. Os Sonâmbulos. São Paulo: Ibrasa, 1961.

Série da BBC: A História da Ciência.


[1] Termo cunhado pelo filósofo da ciência Thomas Khun (1922-1996) em sua obra Estrutura das Revoluções Científicas e que significa basicamente a concepção dominante na comunidade científica durante um período.

Riis Rhavia Assis Bachega

Riis Rhavia Assis Bachega

Riis Rhavia Assis Bachega possui graduação em física pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestrado em Cosmologia pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente é doutorando dessa mesma universidade.