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Conhecendo a democracia integral, por Mario Bunge

Por Mario Bunge
Publicado na obra Filosofía Política: Solidaridad, Cooperación y Democracia Integral

Junto com muitos outros, creio que necessitamos ampliar a democracia política para incluir os mencionados valores faltantes, assim como seus correspondentes direitos e deveres. Em um trabalho anterior (Bunge, 1985; 172-173), caracterizei a democracia integral como o regime em que todo mundo tem a liberdade de aproveitar de todos os recursos da sociedade, assim como participar de todas as atividades sociais, submetido somente as limitações impostas pelos direitos dos demais.

Em outras palavras, defendo que o mecanismo adequado para realizar os seis valores chaves previamente listados — meios de subsistência, igualdade, solidariedade, busca pela felicidade, idoneidade e bem comum — é a democracia integral. Esta pode ser definida como o conjunto império de:

  1. a democracia ambiental: acesso igual, mas administrado, aos recursos naturais e seu aproveitamento sustentável;
  2. a democracia biológica: indiferente de gênero e cor;
  3. a democracia econômica: predomínio de companhias autogeridas (empresas familiares, cooperativas e organizações sem fins lucrativos) no lugar de empresas de propriedade e administração das riquezas ou bens privados ou bens estatais;
  4. democracia cultural: igual acesso ao patrimônio artístico, humanístico, científico e tecnológico;
  5. democracia política: liberdade para eleger funcionários públicos e apresentar-se como candidato a cargos públicos, assim como a administração idônea, justa e honesta dos bens comuns;
  6. a democracia jurídica: isonomia efetiva (as mesmas leis para todos) e
  7. a democracia global: “o respeito ao princípio de igualdade de direitos e a livre determinação dos povos” (Carta das Nações Unidas, 1.2).

Se o leitor me permite, explicarei o anterior com melhor detalhe. A democracia ambiental é mais que uma mera proteção ao meio ambiente: é o direito de todos a desfrutar do ar limpo e água potável. Também é direito de todos, não só daqueles muitos ricos, a explorar as riquezas naturais. Porém, para evitar o desperdício dessas riquezas, necessitamos administrar-las coletivamente, de acordo com uma estrita legislação baseada em normas sólidas da economia de recursos.

A democracia biológica inclui a igualdade de gênero e etnia, assim como os direitos legais a propriedade pessoal e a salários iguais por igual trabalho. Todo o mundo deveria poder adquirir as habilidades necessárias para ganhar um salário decentes ou para comprar ou alugar um apartamento em um ambiente limpo e seguro.

Tal como temos concebido aqui, a democracia econômica ou economia participativa, da forma que é chamada por Vanek (1975) e Albert (2003), consiste na propriedade coletiva das empresas, assim como sua administração por cooperativas de trabalhadores livremente organizadas. Somente os bens públicos estratégicos, tais como as infraestrutura e as comunicações, assim como as fontes de energias e alguns serviços públicos, deveriam ser propriedade do Estado e administradas por este. Depois de tudo, esta tem sido a função expressiva do Estado: administrar os bens públicos. Em outras palavras, defendo o que têm sido chamado de socialismo de mercado. Se trata de uma economia em que todas as empresas são propriedades de seus trabalhadores e são os mesmos quem as fazem funcionarem e as administram; essas firmas não empregam a terceiros e o Estado é muito semelhante ao Estado liberal desenvolvido, sem a agressão militar.

A democracia cultural inclui a educação gratuita a seus três níveis, a investigação livre e a propriedade pública (bem do Estado ou bem da ONG) dos recursos culturais tais como laboratórios, museus e bibliotecas, zoológicos, aquários e jardins botânicos, assim como de institutos humanísticos, científicos e tecnológicos.

A democracia política inclui o direito a votar e a apresentar-se como candidato a cargos públicos, e muito mais: também inclui o direito e o dever de participar em alguns processos políticos que tem lugar entre os períodos eleitorais, assim como as atividades de ONG tais como os sindicatos, as organizações sem fins lucrativas, os clubes e as igrejas.

A democracia jurídica é, desde já, o mesmo que a isonomia ou igualdade ante a lei em uma sociedade submetida a um império de leis equitativas. Porém, esse princípio não se pode levar em prática onde as leis favoreçam aos poderosos ou onde os ricos podem darem ao luxo de pagar um melhor conselho jurídico que os pobres. (Por exemplo, nos Estados Unidos, é quase 12 vezes mais fácil ir a cárcere um homicida negro que um branco.)

Por último, a democracia global é a prática da liberté, égalité, fraternité entre os países. Em outras palavras: a governança do mundo é de interesse de todos os povos, assim como das gerações futuras e o fim correlativo das políticas regionais e globais. A consecução deste objetivo supõe o desarmamento mundial, a cooperação internacional e a governança global dos recursos naturais.

Isso conclui nossa caracterização da democracia integral. Qual é sua justificação? Proporei as seguintes razões:

  1. Posto que as diferentes pessoas têm necessidades, tendências e talentos diferentes, todos deveriam obter o que necessitam para se realizarem e deveriam contribuir ao bem comum segundo o máximo de suas capacidades (Louis Blanc). Nem necessidades nem aspirações legítimas desatendidas, nem evasão de responsabilidades.
  2. Posto que o trabalho é a fonte última de toda riqueza (Smith, Ricardo e Marx), todo adulto capaz deve ter tanto o direito como o dever de realizar um trabalho renumerado. Sem esmolas, sem renda e sem pilhagens.
  3. Posto que todo mundo tem direito aos frutos de seu trabalho (Locke e Marx) os ganhos devem ser compartilhados de maneira equitativa. Ausência de exploração.
  4. Posto que cada pessoa é “o mais seguro guardião de seus direitos e interesses” (Mill), todos os trabalhadores devem ter voz e voto na maneira em que se organiza o lugar de trabalho. Um trabalhador, um voto na gestão.
  5. A causa de que todo trabalho requer de alguma habilidade e dado que a inovação é essencial para a supervivência biológica e social, os supervisores e gerentes devem ser tecnicamente idôneos, além de serem honestos e justos. Chefes não, especialistas sim.
  6. O bem comum se conserva melhor quando todos têm a oportunidade de protegê-lo, usá-lo e enriquecê-lo segundo regras desenhadas a luz da ciência e da tecnologia, assim como adotadas de maneira democráticas. Bens comuns nem desgovernados e nem mal-governados.
  7. Posto que a autorrealização é um direito humano é que a liberdade nos faz sentirmos bem, deve proteger a liberdade assim como a igualdade. Sem liberdade não há igualdade.
  8. Posto que todos necessitam da ajuda de alguém e a causa de que nos sentimos bem quando fazemos o bem, o altruísmo e a solidariedade devem ser consideradas essenciais para a coexistência civilizada de todos os grupos sociais e devem ser promovidas correspondentemente. Sem deveres não há direitos.
  9. Só se pode garantir os direitos humanos onde os benefícios e as cargas estão distribuídos de maneira equitativa, de modo tal que nenhuma pessoa, organização ou país se aproveite do outro.
  10. Só se pode manter a paz através do desarmamento mundial, se nenhum governo ou empresa tem influência suficiente como para iniciar uma guerra e se todas as nações pertencerem a redes mais amplas que fazem com que o comércio e a cooperação pacífica sejam mais proveitosos que a guerra. A paz mundial através da cooperação internacional e o império do direito internacional.
Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.