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Como um autista vivencia o mundo

Por David Mitchell
Traduzido por Israel Vilas Bôas

O texto que se segue é a introdução de David Mitchell ao livro The Reason I Jump (“A razão por que pulo”, em português, sem data de lançamento no Brasil), por Naoki Higashida, disponível agora pela editora Random House.

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O autor, que tem 13 anos de idade, de A razão por que pulo, convida você, leitor, a imaginar uma vida diária em que sua capacidade de falar é removida. Explicar que você está com fome, ou cansado, ou com dor, bem como conversar com um amigo, está, agora, além de seus poderes. Eu gostaria de levar esse experimento mental mais adiante. Agora, imagine que, depois de perder a sua habilidade de se comunicar, o editor-da-casa, que ordenava seus pensamentos, vai embora sem aviso. É provável que você nem soubesse que esse editor-mental existia, mas, agora que ele ou ela foi embora, você se dá conta, tarde demais, de que era ele ou ela quem permitira que sua mente funcionasse por todos esses anos. Uma explosão de ideias, memórias, impulsos e pensamentos desaba sobre você, incessantemente. Seu editor controlava todo esse fluxo, afastando a maior parte dele para longe, recomendando apenas um pequeno número para sua consideração consciente. Mas, agora, você está por conta própria.

Agora, sua mente é uma sala onde 20 rádios, todos sintonizados em diferentes estações, estão clangorando vozes e músicas. Os rádios não têm botões de desligar ou controle de volume, a sala na qual você está não tem porta nem janela, e o alívio só virá quando você estiver muito exausto para ficar acordado. Para piorar a situação, um outro editor, até então não reconhecido, acaba de sair, sem aviso prévio, seu editor dos sentidos. De repente, estímulos sensoriais do ambiente estão-lhe inundando, também, não filtrados em qualidade e esmagadores em quantidade. Cores e padrões de formas nadam e clamam por sua atenção. O amaciante de roupas em seu suéter cheira tão forte quanto purificador de ar disparado diretamente em suas narinas. Seus jeans confortáveis ​​são agora tão ásperos quanto palha de aço. Seus sentidos vestibular e proprioceptivo também estão em desequilíbrio, por isso o chão fica inclinando como o de uma barca em um mar agitado, e você não tem mais certeza de onde suas mãos e pés estão em relação ao resto de você. Você pode sentir as placas do crânio, além dos músculos faciais e da mandíbula, a cabeça presa dentro de um capacete de motocicleta três vezes menor que a cabeça, o que pode, ou não, explicar por que o ar condicionado é tão ensurdecedor quanto uma furadeira elétrica, mas seu pai – que está bem aqui na sua frente – soa como se ele estivesse falando com você a partir de um telefone celular, em um trem passando por lotes de túneis curtos, fluente em cantonês. Você não é mais capaz de compreender a sua língua materna, ou qualquer língua: A partir de agora, todos os idiomas lhe serão línguas estrangeiras. Até o seu senso de tempo sumiu, tornando-o incapaz de distinguir entre um minuto e uma hora, como se você tivesse sido enterrado em um poema de Emily Dickinson sobre a eternidade, ou trancado em um filme sci-fi sobre manipulação do tempo. Poemas e filmes, no entanto, chegam a um fim, ao passo que esta é a sua nova realidade em curso. O autismo é uma condição vitalícia. Mas mesmo a palavra autismo não faz mais sentido para você agora que a palavra 自闭症 ou αυτισμός ou .

Obrigado por ficar até o fim, embora o verdadeiro fim, para a maioria de nós, fosse envolver sedação e ser hospitalizado à força, e o que acontece depois é melhor não especular. No entanto, para as pessoas nascidas dentro do espectro do autismo, esta realidade não editada, não filtrada, e assustadora como o inferno é o lar. As funções que a genética outorga ao resto de nós – os editores – como um direito de nascença, as pessoas com autismo precisam passar suas vidas tentando simular. É uma tarefa intelectual e emocional de proporções Hercúleas, Sisíficas e Titânicas, e se as pessoas autistas não são heróis, então não sei o que heroísmo é, deixando pra lá que os heróis não têm escolha. A própria senciência não deve ser vista como dada, e sim como um autoconstructo feito tijolo a tijolo requerendo constante manutenção. Como se isso não fosse um pedido bastante alto, as pessoas com autismo devem sobreviver em um mundo exterior, no qual “necessidades especiais” é gíria para “retardado”, onde colapsos nervosos e ataques de pânico são vistos como birra, em que requerentes de auxílio deficiência são tomados por sanguessugas da previdência social, e onde a política externa britânica pode ser descrita como “autista” por um ministro francês. (O Sr. Lellouche desculpou-se mais tarde, explicando que ele jamais sonhou que o adjetivo pudesse causar ofensa. Eu não duvido disso.).

O autismo não é nenhuma moleza para os pais nem para os cuidadores da criança, e criar um filho ou filha autista não é um trabalho para os pusilânimes – de fato, pusilanimidade está condenada pela primeira pequena dúvida de que há Algo Não Tão Certo com a sua criança de 16 meses. No Dia do Diagnóstico, um psicólogo infantil lhe entrega o veredicto com um truísmo desgastado sobre seu filho ser o mesmo carinha que ele era antes desta notícia redefine-vida ser confirmada. Então você atravessa o corredor polonês das reações das outras pessoas: “É tão triste”; “O quê, então ele será como o Dustin Hoffman em Rain Main?”; “Eu espero que você não aceite este assim chamado ‘diagnóstico’ sem protestar!”; e a minha favorita, “Sim, bem, eu disse ao meu pediatra onde enfiar a Tríplice Viral dele”. Seus primeiros contatos com a maioria das agências de apoio irão colocar os últimos pregos no caixão da pusilanimidade, e enxertar-lhe uma camada de tecido cicatricial e cinismo tão grosso quanto um rinoceronte escondido. Há pessoas talentosas e com recursos trabalhando no suporte do autismo, mas com uma regularidade depressiva as políticas do governo parecem ser sobre Band-Aids e paliativos, e não sobre compreender o potencial de crianças com necessidades especiais a ajudá-las a se tornar, no longo prazo, uma rede de contribuintes à sociedade. O pequeno consolo é que a teoria médica não mais culpa a sua esposa de causar autismo por ser uma “mãe geladeira” como fazia há não tanto tempo (Pais geladeira estavam indisponíveis para comentário) e que não se vive em uma sociedade na qual as pessoas com autismo são consideradas bruxas ou demônios e tratadas em conformidade com essa crença.

Ao que recorrer em seguida? Livros. (Você já terá começado, pois a primeira reação de amigos e família desesperados para ajudar é enviar recortes de jornais, links da Web, e literatura, por mais tangenciais à sua situação que sejam.) O mercado editorial de necessidades especiais é uma selva. Muitos manuais de Como Ajudar Sua Criança Autista têm uma espiral doutrinária, com generosos auxílios de © e ™. Eles podem conter ideias usáveis, mas lê-los pode parecer depressivamente como ser chamado a se filiar a um partido político ou a uma igreja. Os textos mais acadêmicos são mais densos, com mais referências cruzadas, e ricos em pedagogia e abreviações. É claro que é bom que os acadêmicos estejam pesquisando este campo, mas frequentemente o abismo entre a teoria e o que está se desenrolando no chão de sua cozinha é muito amplo para atravessar.

Outra categoria é o livro de memórias mais confessional, geralmente escrito por um dos pais, descrevendo o impacto do autismo na família e, por vezes, o efeito positivo de um tratamento pouco ortodoxo. Estes livros de memórias são media-friendly e aumentam o perfil do autismo no mercado de causas dignas, mas eu achei seu uso prático limitado, e em justeza eles não são escritos para serem úteis. Toda pessoa autista exibe o seu ou sua própria variação da condição – autismo é mais parecido com padrões de retina que com sarampo – e quanto mais pouco ortodoxo o tratamento para uma criança, menos provável que vá ajudar a outra (a minha, por exemplo).

Uma quarta categoria de livro sobre autismo é a “autobiografia do autismo”, escrita por membros do espectro do autismo, o mais famoso exemplo sendo Thinking in Pictures por Temple Grandin. Com certeza, estes livros são iluminadores, mas quase por definição eles tendem a ser escritos por adultos que já resolveram as coisas, e eles não puderam me ajudar onde eu mais precisava: entender por que meu filho de 3 anos estava propositalmente batendo a cabeça no chão; ou agitando os dedos em frente aos olhos em alta velocidade; ou sofrendo de uma pele tão sensível que não podia sentar-se ou deitar-se; ou uivando em luto por 45 minutos quando o DVD de Pingu estava muito arranhado para o tocador de DVD lê-lo. Minha leitura provia teorias, ângulos, anedotas, palpites acerca destes desafios, mas, sem razões, tudo o que eu podia fazer era continuar procurando, desamparadamente.

Um dia minha esposa recebeu um livro extraordinário que ela havia encomendado do Japão, chamado A razão por que pulo. Seu autor, Naoki Higashida, nasceu em 1992 e ainda estava na sétima série ensino fundamental quando o livro foi publicado. O autismo de Naoki é severo o suficiente para tornar a comunicação oral praticamente impossível, mesmo agora. Mas graças a um professor ambicioso e à sua própria persistência, ele aprendeu a soletrar palavras direto em uma grade alfabética. Uma grade alfabética Japonesa é uma tabela das 40 básicas letras higarana, e sua vertente portuguesa é uma cópia do teclado qwerty, desenhada em uma carta e laminada. Naoki se comunica apontando as letras nestas tabelas para soletrar palavras inteiras, as quais um ajudante ao seu lado então transcreve. Estas palavras se tornam sentenças, parágrafos e livros inteiros. “Extras” em volta da grade incluem números, pontuação e as palavras terminado, sim e não. (Embora Naoki possa também escrever e blogar diretamente em um computador via o seu teclado, ele considera a versão pouco tecnológica da grade alfabética um “corrimão mais estável”, pois ela oferece menos distrações e o ajuda a se enfocar.) Até no começo do ensino fundamental, este método possibilitou que ele se comunicasse com outros, e compusesse poemas e livros de histórias, mas foram as suas explicações sobre por que crianças com autismo fazerem o que fazem que foram, literalmente, as respostas pelas quais estávamos esperando. Composto por um escritor ainda com um pé na infância e cujo autismo ainda era pelo menos tão desafiador e altera-vida quando o de nosso filho, A razão por que pulo foi uma revelação enviada por deus. Lê-lo me fez sentir como se, pela primeira vez, nosso próprio filho estivesse conversando conosco sobre o que estava acontecendo dentro de sua cabeça, por meio das palavras de Naoki.

O livro vai muito além de prover informação, no entanto: ele oferece prova de que trancado dentro de um corpo aparentemente desamparado de um autista está uma mente tão curiosa, sutil e complexa, como a sua, a nossa, a de todos. Durante a jornada 24/7 de ser um cuidador, é muito fácil esquecer que a pessoa pela qual você está fazendo tanto é, e é obrigada a ser, mais adaptável que você sob muitos pontos de vista. Assim como meses se tornam anos, “esquecer” pode se tornar “desacreditar”, e esta falta de fé torna tanto o cuidador quanto o cuidado vulneráveis a negatividades. O presente de Naoki Higashida é restaurar a fé: ao demonstrar acuidade intelectual e curiosidade espiritual; pela análise de seu ambiente e sua condição; e por um humor travesso e um impulso de escrever ficção. Não estamos falando de sinais ou dicas dessas propensões mentais: elas já estão aqui no livro.

Se isso não fosse suficiente, A razão por que pulo sem perceber descredita o mais apocalítico item da sabedoria recebida sobre autismo – que pessoas com autismo são solitários antissociais que carecem de empatia pelos outros. Naoki Higashida reitera repetidamente que não, que ele valoriza muito a companhia de outras pessoas. Mas porque a comunicação é tão repleta de problemas, uma pessoa com autismo tende a acabar sozinha em um canto, no qual pessoas então veem a ele ou a ela e pensam: “Ah! clássico sinal de autismo, aquilo”. Similarmente, se pessoas com autismo são cegas para com os sentimentos de outras pessoas, como poderia Naoki testemunhar que o aspecto mais insuportável do autismo é o conhecimento de que ele torna outras pessoas estressadas e depressivas? Como poderia ele escrever uma história (intitulada “Eu estou bem aqui”, incluída no fim do livro) ostentando personagens que mostram uma gama de emoções e um roteiro criado para torcer as glândulas de lágrimas? Como todos os mamíferos contadores de histórias, Naoki está antecipando as emoções de sua audiência e manipulando-as. Isso é empatia. A conclusão é que tanto pobreza emocional quanto aversão à companhia não são sintomas do autismo, mas consequências dele, de seu duro bloqueio da autoexpressão e da ignorância quase intocada da sociedade sobre o que está acontecendo dentro das mentes autistas.

Para mim, tudo isso acima é conhecimento transformador e melhorador-de-vida. Quando você sabe que seu filho quer falar com você, quando sabe que ele está absorvendo os seus arredores tão atentamente quanto a sua filha não autista, qualquer que seja a evidência em contrário, então você pode ser dez vezes mais paciente, disposto, compreensivo e comunicativo; e dez vezes mais capaz de ajudar no desenvolvimento dele. Não é nenhum exagero dizer que A razão por que pulo nos proporcionou uma reviravolta em nossa relação com nosso filho. A escrita de Naoki Higashida administrou o impulso que eu precisava para parar de sentir pena de mim mesmo e começar a pensar quão mais dura é a vida para o meu filho, e o que eu poderia fazer para torná-la menos dura. Espirais virtuosas são tão maravilhosas na criação dos filhos com necessidades especiais, como em qualquer outra coisa: as suas expectativas para o seu filho são levantadas; sua resistência para passar os locais rochosos é reforçada, e seu filho sente isso, e responde. Minha mulher começou a trabalhar na tradução informal do livro de Naoki para o inglês para que os outros cuidadores e tutores de meu filho pudessem lê-lo, bem como para alguns amigos que também têm filhos e filhas com autismo no nosso canto da Irlanda. Mas depois de descobrir por meio de grupos na Web que outras japonesas expatriadas, mães de crianças com autismo estavam frustradas pela falta de uma tradução para o inglês, nós começamos a refletir se não haveria uma audiência muito maior para Naoki Higashida. Esta tradução inglesa de A razão por que pulo é o resultado.

O autor não é guru, e se as respostas a algumas questões podem parecer meio esparsas: lembrem-se de que ele tinha apenas 13 anos quando as escreveu. Mesmo quando ele não pode prover uma resposta curta e direta – tal como à pergunta “Por que você alinha seus brinquedos tão obsessivamente?” – o que ele tem a dizer ainda vale a pena. Naoki Higashida continuou a escrever, mantém um blog quase diário, se tornou bem conhecido em círculos de defesa do autismo e tem figurado regularmente em na revista japonesa Big Issue. Ele diz que aspira a ser um escritor, mas é óbvio para mim que ele é já é um – um honesto, modesto e atencioso escritor, que venceu enormes chances contrárias e transportou informação inédita da mente severamente autista para o mundo; um processo tão árduo para ele quanto, digamos, o ato de carregar água nas mãos em concha através de uma movimentada Times Square ou Piccadilly Circus seria para você ou para mim. Os três caracteres usados na palavra autismo em japonês significam auto, confinado e doença. Minha imaginação converte esses caracteres em um prisioneiro trancado e esquecido em uma cela de confinamento solitário esperando alguém, qualquer um, perceber que ele ou ela está ali dentro. A razão por que pulo derruba um tijolo da parede.

Universo Racionalista

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Fundada em 30 de março de 2012, Universo Racionalista é uma organização em língua portuguesa especializada em divulgação científica e filosófica.