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A origem meteorítica da lâmina do punhal de ferro de Tutankhamon

Uma notícia de uma descoberta interessante ganhou força nesse último dia, porém conseguiu isso graças ao uso de títulos sensacionalistas. A notícia a qual nos referimos foi a descoberta de que o ferro utilizado para confeccionar a lâmina de um punhal encontrada em no túmulo do faraó egípcio Tutankhamon tem origem meteorítica, ou seja, que o metal usado caiu na Terra na forma de um meteorito.

Contudo, sem muito esforço, a ideia por trás da descoberta foi distorcida graças a uso de termos mais evocativos, dizendo que a adaga tinha origem espacial ou extraterrestre. É certo que, no fundo, não deixa de ser o caso, já que o material realmente é extraterrestre (na definição de que se trata de algo vindo de fora da Terra), porém a imaginação fértil e o pouco entendimento dessa terminologia rapidamente fizeram as pessoas pensarem em seres extraterrestres teriam a forjado e não que processos naturais ocorridos fora da Terra teriam dado origem ao material.

Cientificamente falando, o que aconteceu foi a descoberta de que uma adaga importante fora feita de um material que, para os antigos habitantes do Egito, tinha um caráter importante, se não, divino: os meteoritos ferrosos. Para entendermos melhor, a primeira sugestão é a leitura do próprio artigo (científico) que trata a descoberta, escrito por Comelli et al (2016). Bastante parcimonioso e explicativo, ele apresenta uma bela introdução ao assunto, além dos detalhes do que foi feito. Vamos falar um pouco sobre o que foi discutido nesse artigo.

Os autores destacam como o uso de metais foi importante para a humanidade, porém a produção de ferro não era fácil. Na superfície da Terra, o fero está presente na forma de óxidos difíceis de serem reduzidos ao metal, necessitando a construção de fornos de alta temperatura e técnicas complexas. Eles destacam que os primeiros materiais de ferro datam de 3200 a.c. e que a maioria das peças eram na verdade ferro meteorítico forjado. O ferro meteorítico tem a vantagem de já estar disponível na forma de metal (reduzida), pronta para o uso, além de que possuem quantidades variáveis de níquel e uma pequena quantidade de cobalto, o que dão à liga certa resistência mecânica e contra oxidação.

Assim, diversas peças de ferro de várias civilizações apresentam a composição característica de origem meteorítica: a presença de níquel em quantidades superiores a 4%, presença de cobalto, e pequenas quantidades de outros elementos (geralmente usados para estudo e classificação de meteoritos ferrosos).

Os autores destacam o uso de pedaços de meteoritos ferrosos por diversos povos, entre eles: povos Inuit da Groelândia para fabricação de ferramentas (meteorito Cape York); pessoas da cultura Hopewell da América do Norte, que também fabricavam ferramentas; povos de religião budista que esculpiram uma pequena estátua religiosa (meteorito Chinga); egípcios que fabricaram contas metálicas para enfeites e adornos; e povos antigos que moravam na atual Polônia que fabricaram braceletes. No caso de muitos desses povos, além de culturas antigas do Tibet, Síria e Mesopotâmia, não só se fabricava objetos com material meteorítico, como também se via no meteorito uma mensagem divina.

Neste caso, as escavações da tumba de Tutankhamon, que remetem o começo do Século XX, revelaram a presença dessa famigerada adaga e de outros materiais de ferro. Sabia-se da menção desses materiais forjados em ferro em períodos anteriores do reinado de Tutankhamon como alguns que remontam ao reinado do seu provável avô. Os materiais achados na tumba já haviam sido testados para se saber a composição e origem, porém havia sido detectado apenas 2,8% de níquel, inconsistente com uma origem meteorítica. Atualmente então feito um estudo mais preciso da amostra, sendo usada a chamada espectroscopia por fluorescência de raios X (XRF), técnica que avançou muito nos últimos anos e que é tem a vantagem de ser não-destrutiva. O resultado da análise indicou a presença de 10,8 ± 0,3% em massa de níquel e 0,58 ± 0,04% em massa de cobalto. Esses valores são condizentes com material meteorítico.

Essa pesquisa se mostrou importante por destacar o uso de meteoritos por egípcios para produção de armas e que esse material poderia ter significado religioso. Para a arqueologia, ajudou entender melhor a relação dos povos egípcios com a fabricação de ferramentas de ferro. Além disso, a pesquisa ajudou a dar entendimento a hieróglifos que descreviam esse tipo de material como “ferro do céu” indicando que esse povo já tinha associado acertadamente que os meteoritos usados para a confecção desses artefatos vinham do céu.

Referência

  • COMELLI, D., D’ORAZIO, M., FOLCO, L., EL-HALWAGY, M., FRIZZI, T., ALBERTI, R., CAPOGROSSO, V., ELNAGGAR, A., HASSAN, H., NEVIN, A., PORCELLI, F., RASHED, M. G., VALENTINI, G. The meteoritic origin of Tutankhamun’s iron dagger blade. Meteoritics & Planetary Science. 2016.
Gabriel Gonçalves

Gabriel Gonçalves

Doutorando pelo IQ-USP em Astrobiologia e Meteorítica; mestre em Engenharia Química pela UFSCar na área de Engenharia Bioquímica; graduado em Engenharia Química na UFSCar.