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A ciência pode decidir a questão sobre Deus?

Por Robert Todd Carroll
Publicado na The Skeptic’s Dictionary

“… a crença num criador onisciente e onipotente não tem em si qualquer implicação moral – ainda cabe a você decidir quando é correto obedecer suas ordens”.

– Steven Weinberg

“… o que faz dos seres humanos especiais é sua capacidade de ponderar e dialogar”.

– Stephen Jay Gould

Em seu ensaio, de 1997, “Magistérios Não-Interferentes”, Stephen Jay Gould escreveu inocentemente:

“A falta de conflito entre ciência e religião emerge da falta de interferência entre seus respectivos domínios de expertise profissional – ciência na constituição empírica do universo e religião na busca por valores éticos apropriados e do significado espiritual de nossas vidas. A obtenção de sabedoria para uma vida completa requer atenção extensiva a ambos os campos, pois o grande livro nos diz a verdade que nos liberta e que viveremos em harmonia máxima com nossos semelhantes quando aprendermos a agir com justiça, amar com misericórdia e caminhar com humildade. ”

Daí o mundo veio abaixo.

Parte da veemente reação ao ensaio de Gould deveu-se, provavelmente, aos muitos leitores que ignoraram os 80% restantes de suas palavras. Algumas das reações negativas atribuem-se à sua crença de que especialistas em religião são análogos a especialistas em ciência. Para além do fato de que as duas áreas possuem pessoas a quem chamam de líderes ou especialistas, a similaridade dissipa-se num limbo. Teólogos e filósofos da religião podem muito bem ter seus peritos na saga para entender valores e “sentido espiritual” (o que quer que isso signifique!), mas jamais terão peritos que suplantem especialistas anteriores, porque eles não têm maneiras de falsificar as alegações uns dos outros.  Teorias científicas e crenças sobre a constituição empírica do universo podem ser testadas e, aquelas que são falsas, removidas da disputa. Teorias filosóficas ou teológicas sobre valores e “sentido espiritual” não podem ser submetidas a testes (além dos testes óbvios como serem livres de contradições conceituais ou serem inconsistentes com fatos conhecidos).

Outra parte da reação raivosa a Gould pode ser atribuída ao seu respeito à religião de um modo geral e à Bíblia, particularmente (o “grande livro” que ele alega poder “nos libertar”). Claro, religião merece respeito, desde que você ignore todos seus aspectos que são irrespeitáveis, e a Bíblia é um livro formidável, desde que você edite suas partes não-tão-formidáveis. Gould não estava defendendo uma política de viva-e-deixe-viver, mas uma política de respeito mútuo por ciência e religião, algo que aqueles que se nutrem pelos aspectos nocivos de um e de outro não irão tolerar.

Os muitos bramidos contra Gould, no entanto, surgiram por conta de sua alegação de que não haveria conflito entre ciência e religião. O repúdio de Gould ao paradoxal “criacionismo científico” como um “movimento localizado e paroquial” que “pouco significa” para a maioria de católicos, judeus e protestantes, poderia ter a intenção de mostrar que não precisamos levá-los a sério, mas a implicação de sua política conciliatória parece requerer que até mesmo a ala dos lunáticos receba seu devido respeito. Gould não enxergou criacionistas como uma ameaça à ciência e, de fato, não são. Eles não possuem nada de valor com o qual possam desafiar a ciência. Sua torpe tentativa de diminuir a evolução com o “design inteligente” deveria ser prova o bastante de que não são nada além de uma chateação. Ele chamou o criacionismo de um “grupo dissidente” que havia se tornado um “filão” no Estados Unidos. Bem, esse filão é agora um segmento e é mundial. Ainda não representa ameaça à ciência, mas perturba a educação científica e a percepção do público sobre ciência. (Poderíamos comparar os criacionistas aos grupos anti-vacinas. Estes não representam ameaça à ciência de vacinação, mas à saúde pública). É evidente, religião e ciência não estão em conflito, não obstante as partes em que estão.

Em defesa de Gould, no entanto, eu argumentaria que ser um teólogo ou filósofo não atribui, por si, um status especial como alguém que conhece a verdade sobre valores e “significado espiritual”, ainda assim, há pensadores que de fato possuem algo importante e sábio a dizer sobre esses valores. Alguns desses pensadores são religiosos. Alguns são filósofos profissionais. Outros são cientistas, porém ser um cientista não confere a ninguém um status especial de conhecimento das verdades do mundo empírico, também. Há muitos cientistas que fazem falsas e absurdas afirmações sobre o mundo empírico, assim como há muitos filósofos que fazem afirmações fúteis sobre valores. A maioria dos cientistas tem pouco retrospecto em história da filosofia e provavelmente não são melhores em discutir sobre valores que qualquer outro grupo de cidadãos. Alguns cientistas são muito adeptos da metafísica e ética, isso, no entanto, não transforma ética ou metafísica em ciências. Esse argumento, sustentado vigorosamente por Gould, foi desafiado por Richard Dawkins e outros cientistas. Eu acho que Gould estava certo.

Para quem não está familiarizado com o ensaio de Gould, aqui vai um pequeno retrospecto. No início de 1984, ele passou várias noites no Vaticano em um hotel com alguns padres. Ele estava lá para um encontro sobre inverno nuclear, promovido pela Pontifícia Academia de Ciências. A despeito da insistência de Dawkins de que ciência e religião são irreconciliáveis, há religiosos e padres que também são cientistas. De qualquer modo, no hotel Gould conheceu alguns padres que o envolveram em uma conversa sobre “ciência da criação”, o que eles consideravam paradoxal. Sim, os padres reconheciam a evolução como um fato e aceitavam a noção de que Deus infunde a alma em corpos humanos. Estavam estupefatos com cristãos que negam evolução, tanto quanto Dawkins costuma ficar com cristãos que aceitam evolução.

Gould não achou nada controversa a habilidade dos padres de aceitar tanto evolução quanto intervenção divina. Seu ensaio sobre magistérios não-interferentes explicava sua posição nos termos da história do papado, retrocedendo até a encíclica de 1950, Humani Generis, do Papa Pio XII, que dizia que “católicos podem acreditar no que quer que a ciência determine sobre evolução do corpo humano, desde que aceitem que, em algum momento de sua preferência, Deus infundiu uma alma em tais criaturas. ” Gould ressaltou que “não há problema nessa afirmação, pois, qualquer que seja minha crença privada sobre almas, a ciência não pode alcançar tal tema e, portanto, não pode ser ameaçada por qualquer posição teológica em assunto tão legítima e intrinsecamente religioso. Papa Pio XII, em outras palavras, havia propriamente reconhecido e respeitado os domínios separados de ciência e teologia. ” Eu penso que Gould estava errado em dizer que a ciência não pode tanger temas como Deus ou almas e creio que ele estava errado em identificar religião e teologia como privilegiadas. No entanto, o considero correto em sugerir que a ciência não pode provar que Deus não infunde almas em corpos.

Nada é tão impróprio quanto um filósofo que ignora uma alegação científica de que um conceito fundamental daquela ciência está errado, exceto talvez por um cientista que ignora quando uma área da filosofia afirma que determinado conceito fundamental em filosofia está errado. Jerry Fodor e Richard Dawkins são garotos-propaganda dessas duas tolices. Fodor, um filósofo, alega que a seleção natural é um erro fundamental. Dawkins, um cientista, afirma que questões que concernem à alegações sobrenaturais são perguntas científicas. Quando um biólogo evolucionista lê Fodor, abana a cabeça ante à ignorância do homem. Quando um filósofo lê Dawkins sobre a relação entre religião e ciência, ele também abana a cabeça ante à ignorância do homem. Fodor de fato não tem a menor ideia sobre importantes desenvolvimento em biologia evolucionária e Dawkins não tem a menor ideia sobre a fundamental distinção em filosofia entre questões empíricas e conceituais; ou sobre algo que comunica um assunto e algo que vincula todos os temas relacionados ao assunto comunicado.

Uso Dawkins como representante de um número de cientistas que concorda com ele que a existência de deuses e espíritos é uma pergunta científica, como PZ Myers, Jerry Coyne, Bob Park, Sam Harris e Vic Stenger. Ele crê que a existência de Deus é uma questão científica, uma vez que a evidência empírica torna altamente improvável que o deus abraâmico (ou outros deuses de qualquer outra religião) exista. Ele parece pensar o panteão inteiro de filósofos, de Thales a Daniel Dennet, não entende que uma vez que existem fortes argumentos empíricos contra a existência de Deus, sua existência é, portanto, uma questão científica. Quão ofuscados devem se sentir os filósofos por ter deixado passar algo tão óbvio. Não apenas os filósofos, de Platão e Aristóteles a Hume e Kant, não entenderam que metafísica é uma ciência, como também devem ter perdido a aula em que foi explicado que tudo é ciência ou superstição. Ética? Uma ciência. Epistemologia? Ciência. Filosofia política ou filosofia da religião? Ciências. Filosofia da ciência? Ciência.

Dawkins pode, é claro, estar certo. Jed C. Macosko, um cientista que representa o Instituto Discovery e defensor do ensino do Design Inteligente como alternativa à Seleção Natural, tem argumentado que ciência deveria ser definida como a busca por evidência e sua posterior perseguição onde quer que ela conduza, incluindo explicações não-naturalísticas (i.e., sobrenatural). Poucos anos após conhecer esse argumento de Macosko, ouvi PZ Myers alegar (na mesma sala no campus UC Davis) que a ciência usa de evidências, lógica e razão, para prover apenas explicações naturalísticas. Ele contrastou suas afirmações com uma lista de alegações sobrenaturais (Deus, alma, transubstanciação, etc). Alguém poderia encarar essa cisão como um indicativo de que assuntos do sobrenatural não concernem à ciência. Ou talvez, ele tenha tentado dizer que uma vez que o sobrenatural não é natural, ele é sem sentido ou não-existente.

Gary Schwartz, um cientista formado em Harvard (como ele frequentemente faz lembrar), conduz pesquisas sobre a existência de uma pós-vida através da consciência. Ele chega a afirmar que conduziu experimentos científicos com o espírito de William James e outras pessoas mortas, a quem se refere como “co-investigadores hipotéticos falecidos”. Outros que realizaram investigações sobre fenômenos sobrenaturais são Ian Stevenson, sobre reencarnação, e muitos outros sobre regressão a vidas passadas, assim como muitos cientistas envolvidos em sociedades de pesquisa psíquica que investigaram de tudo, de casas mal-assombradas a ectoplasma. Mary Roach escreveu um livro sobre cientistas espirituais, chamado Spook. Então, Dawkins e outros estão em boa companhia. Há muitos cientistas que concordam de que o estudo do sobrenatural é propriamente parte do domínio da ciência. Alguém deve se perguntar, no entanto, por que Dawkins e outros pensam que a evidência dá suporte à improbabilidade de qualquer coisa sobrenatural, enquanto outros cientistas acham que a evidência sustenta a probabilidade de um designer para o universo e a sobrevivência da consciência. Essas posições diferentes, contudo, não se parecem com as diferentes posições que cientistas tinham, por exemplo, no século XIX, quando a natureza da eletricidade estava em debate. Aquelas diferenças poderiam ser resolvidas com experimentos e coleta de evidências. Dawkins et al., incluindo Macosko e Schwartz, creem que a questão de Deus pode ser estabelecida por experimentos e evidências. Os últimos pensam que a evidência sustenta a hipótese sobrenatural, Dawkins e outros, não. Esses últimos parecem enxergar os defensores da escola “ciência-prova-o-sobrenatural” como os crentes na Terra plana ou na visão geocêntrica do universo.

Essa fenda entre duas escolas de pensamento científico não seria uma cisão filosófica que não pode ser respondida por novas investigações científicas? Parece haver uma divisão similar entre cientistas em relação à medicina. Um grupo chega a se autodenominar “Medicina Baseada na Ciência” (SBM na sigla em inglês) para distinguir-se do grupo que defende acupuntura, quiropraxia, homeopatia e um vasto grupo de “energias”. Estes se referem à sua medicina como “complementar” ou “alternativa” (CAM). O grupo SBM considera que o grupo CAM pratica “junk science” ou pseudociência, mas não ciência de verdade. De modo similar, um número de cientistas refere-se à turma do Design Inteligente como “criacionistas de jaleco”. Em outras palavras, eles podem falar como cientistas e fazer parecer que fazem ciência, mas na realidade só estão fazendo religião.

Design inteligente é religião? Quando Spinoza atacou a metafísica teleológica no século XVII, ele pensava fazer filosofia, embora ele parecesse pensar, depois de seu herói Descartes, que a filosofia poderia ser uma rigorosa ciência dedutiva. Seu Ética foi escrito segundo o método da geometria Euclidiana. Não sei se matemáticos consideram matemática uma ciência; e por que não considerariam? De todo modo, Spinoza usou seu método geométrico para provar que Deus existe, que é unido à natureza e possui infinitos atributos dos quais conhecemos apenas dois, corpo e mente. Ele também pensava ter provado que tudo é determinado e acontece mecanisticamente de acordo com a lei de causa e efeito. Isso era ciência? Eu creio que não. Quando Pauley defendeu o Design Inteligente no século XVIII e Hume demoliu seus argumentos, o que fizeram era filosofia, mas talvez devesse se chamar ciência.

Houve um tempo em que mesmo a física era considerada parte da filosofia, então suponho que é justo que hoje consideremos filosofia como parte da física. Não seria essa a implicação do trabalho de Frank J. Tipler? Ele é um físico que afirma ter provado que conceitos como imortalidade, milagre e ressurreição dos mortos são consistentes com as leis da física ou algo parecido. Se Dawkins e seu grupo está certo, talvez criacionismo e Design Inteligente deveriam ser parte de qualquer currículo científico. Se questões referentes à existência de espíritos e deuses são científicas, talvez elas devessem ser discutidas em aulas de ciência, não aulas de filosofia ou religião. Se cientistas do espírito, como Gary Schwartz, estão certos, talvez colocar médiuns à prova deveria ser parte de nosso currículo científico. Se cientistas do CAM estão certos, talvez terapias alternativas devam ser parte do currículo em toda escola de medicina baseada em ciência. Na realidade, se todos esses estiverem certos, nós podemos reduzir nossas escolas a um único departamento. Se qualquer assunto que é iluminado pela ciência logicamente implica que qualquer assunto relacionado é ciência, então só o que existe é ciência. Todo o resto é superstição ou coisa que o valha. Filósofos referem-se tradicionalmente a essa visão como cientificismo e sustentam que é um assunto filosófico que não pode ser resolvido pela ciência. A alegação de que apenas afirmações científicas tem valor não é uma afirmação científica.

Por outro lado, talvez nem tudo seja ciência. Ciência pode intercalar-se com tudo, mas isso não torna tudo ciência. Ao que parece, ciência pode contribuir com o jornalismo ou direito, por exemplo, mas não parece verdade dizer que tanto jornalismo quanto direito são parte da ciência ou que qualquer questão sobre ambos é uma questão científica. O mesmo vale para uma série de questões em metafísica, epistemologia, ética e outras áreas tradicionalmente abordadas por filósofos.

Muitos filósofos têm usualmente sustentado que ciência, razão e lógica deveriam ser trazidos à luz em qualquer tema de crença. Eles nunca pensaram, no entanto, que fazê-lo torna qualquer questão filosófica numa questão científica. A existência de duendes pode ser um assunto em que a ciência pode colaborar, mas dizer que isso é uma questão científica é um pouco de exagero. (Que ciência estudaria leprechauns? Criptozoologia?)

A maioria dos filósofos concordaria que assuntos relativos a existência de espíritos ou deuses não são questões científicas, a despeito do fato de que qualquer estudo inteligente sobre esses temas deveria levar em conta todo o conhecimento científico. Obviamente é relevante levar em conta todo o conhecimento em anatomia ou fisiologia, por exemplo, que indica design estranho ou ineficiente ao argumentar contra alguém que alega que uma deidade onisciente e onipotente projetou o corpo humano. Não há qualquer teste empírico que poderia falsificar o argumento de que “um ser onisciente e onipotente existe”. A alegação é intestável. Todos nós somos capazes de criar uma extensa lista de coisas que demonstram que o projeto do corpo humano é pouco inteligente, estúpido, pobre, incompetente, etc. Isso mostra que um dos conceitos sobre Deus é incompatível com parte dos dados empíricos e que esse conceito sobre Deus é coxo e provavelmente falso. Usar o conhecimento científico para abater as ridículas crenças sobre Deus que se instalaram na cultura popular do judaísmo, cristianismo, islamismo ou outras religiões, não faz da existência de espíritos e deuses uma questão científica.

Qual conhecimento científico ou teste empírico poderia falsificar o conceito de uma consciência eterna, não-física, com o poder de criar coisas a partir do nada? Leve em consideração que isso poderia se manifestar exatamente da mesma maneira como o próprio universo se manifesta. Você poderia argumentar que tal ser seria supérfluo, mas sua existência não é algo que a ciência poderia determinar. Alguém poderia fazer diversas alegações sobre esse ser e algumas delas poderia se mostrar improváveis ou falsas por serem inconsistentes com o conhecimento científico corrente ou por serem internamente inconsistentes (i.e., lógica contraditória ou lógica inconsistente). Por exemplo, se você alegar que seu Deus é perfeito e que Ele demanda que você o venere, então estará fazendo afirmações inconsistentes. Perfeição implica que nada exterior ao “ser perfeito” poderia alterar esse ser, mas veneração implica que falta algo ao ser ou que ele quer algo e é afetado pelo que ele consegue ou deixa de conseguir. Alegar que o “ser perfeito” criou qualquer coisa pode indicar imperfeição. Um “ser perfeito” jamais mudaria, pois mudança deve ser para melhor ou pior. Essas são questões conceituais, não questões empíricas. As chamamos de questões metafísicas. Elas podem ser apoiadas pela ciência, mas não podem ser falsificadas por evidências empíricas. Você poderia, por exemplo, usar este mundo imperfeito para falsificar a noção de quem foi criado por um “ser perfeito”, mas tudo o que irá conseguir é mostrar que se esse mundo foi criado, o ser que o criou não era perfeito.

Esses são temas filosóficos e cientistas estariam desperdiçando tempo precioso em ponderar esse tipo de coisa quando poderiam estar fazendo ciência. Perguntar-se se Deus existe ou se é perfeito ou imperfeito, finito ou infinito, talvez seja algo com que não queremos que nossos cientistas desperdicem tempo, assim como não queremos filósofos ignorantes dizendo aos cientistas como lidar com seu trabalho.

Sim, é claro que a ciência tem muito a dizer sobre religião. A maior parte dos conceitos na maioria das religiões contrapõem-se a tudo que aprendemos sobre o mundo através da ciência. A ideia de deuses morrendo e ressuscitando, virgens-mães e anjos, de visões e atos heroicos, mitos da criação, de disparates como a transubstanciação ou a Santíssima Trindade e todas as outras superstições que religiões incutiram em suas muitas culturas são, com justiça, direcionadas à lixeira da ciência. Mas ter algo a dizer em assuntos religiosos não torna esses assuntos dignos da investigação científica. Transubstanciação não é um assunto científico. Qualquer professor que desperdice o tempo de seus alunos demonstrando que a ciência torna essa ideia improvável não está ensinando ciência. Ele estaria ensinando filosofia e deveria mover-se para outra sala para essa discussão sem sentido. Você poderia, é claro, usar da ciência para elucidar assuntos como a virgem-mãe ou mitos da criação, mas isso não torna a crença em ambos uma crença científica. Eu poderia provar que espaguete não pode voar, mas isso não torna a existência do Monstro de Espaguete Voador uma questão científica, enquanto um deus onipotente poderia nos dissuadir a pensar que 2 + 2 = 5 não é uma dúvida matemática, mas filosófica, ainda que lógica e matemática possam ser levadas em conta. Eu entendo quando alguns pensam que se a existência de deuses não é uma questão científica, então religiões tem passe livre. Não acredito nisso. Ninguém é censurado pelo fato de que determinados assuntos não podem ser falsificados por algum teste científico significativo. Alegar que a existência de deuses é um tema científico abre a porta e convida uma variedade de superstições para a arena da ciência. Elas não pertencem a essa arena. Elas pertencem ao estacionamento. A ciência pode explicar porque uma mancha de urina num mictório se parece com a imagem de um periquito, mas não pode explicar (e estaria perdendo seu tempo se tentasse) se algum espírito decidiu apossar-se da urina de alguém para aparecer para os outros e ser venerado. O fato da ciência nos informar sobre pareidolia ou alucinação em massa não torna a existência de espíritos um tema científico. O fato da religião ou determinados grupos religiosos poderem ser estudados cientificamente não torna suas crenças temas científicos.

No fim, a ciência não pode decidir a questão de Deus assim como conceitos filosóficos não podem determinar o que é real ou não em biologia ou teologia. Ciência e filosofia são domínios sobrepostos e isso deveria nos unir, não dividir. Ambas deveriam nos encher de admiração e serem o centro em torno do qual tentamos entender todos os aspectos da existência humana. Deveriam nos preencher de amor em vez de ódio, de humildade em vez de ignorância.

As chances são muito remotas.

Rodrigo Aben-Athar

Rodrigo Aben-Athar

Designer e curtametragista, fascinado por ciência e filosofia. Leitor voraz e tradutor nas horas vagas.